O peronismo com Perón (1946-1955)
A Argentina pouco experimentou a democracia ao longo do século 20. Em 1945, parecia que as cartas já estavam marcadas quando a junta militar, que tomara o poder em 1943, indicou Juan Domingo Perón para as eleições daquele ano.
O coronel Perón estava à frente da Secretaria do Trabalho, onde estabeleceu os primeiros vínculos com os trabalhadores, intermediando seus conflitos com os patrões e ampliando o regime de aposentadorias e de férias remuneradas.
A vitória de Perón nas eleições frustrou a oposição — representada pela União Democrática, frente que congregava socialistas, comunistas, nacionalistas e democratas progressistas —, mas assinalou, definitivamente, a ascensão da classe operária como força política, reunida em torno da Confederação Geral do Trabalho (CGT).
Apoiado nos trabalhadores, Perón assume o discurso de justiça social, afirmando que seu governo não era nem capitalista nem comunista, mas se localizava numa “terceira posição”, o justicialismo — uma doutrina equilibrada sobre três pilares: a justiça social, a independência econômica e a soberania política.
Com esse substrato político, Perón exercia diretamente o controle da CGT, ceifando qualquer tipo de autonomia por parte dos trabalhadores — o que não deixa de ser uma relação complexa, já que esse controle era conquistado à base de vários benefícios sociais. Por outro lado, buscou apoio da igreja católica, ao tornar obrigatório o ensino religioso nas escolas públicas.
Pouco tempo depois de assumir o país, Perón já dava sinais de que seu governo caminhava para o autoritarismo, pois começou a intervir diretamente nas províncias, esvaziar a autonomia do Poder Legislativo e controlar os meios de comunicação, por meio da Secretaria de Imprensa e Difusão. Além de dirigir a economia e cuidar da segurança do povo, o Estado deveria ser, na concepção de Perón, a esfera onde os diferentes interesses sociais resolvessem seus conflitos.
Uma das características mais evidentes do peronismo foram os grandes comícios e manifestações, sempre convocados por Perón em datas comemorativas ou quando era preciso ratificar alguma decisão política. Nesses atos públicos, recheados de discursos emotivos e solenes, o pacto entre o presidente e os trabalhadores era reafirmado — assim como a exacerbação do culto ao líder, uma das marcas registradas dos regimes autoritários.
As esquerdas argentinas não puderam competir contra o fascínio que Perón exercia nas classes trabalhadoras. O Partido Comunista, seguindo as orientações de Moscou, ora o apoiava, ora se voltava contra ele, assim como os militantes do Partido Socialista. Nenhum deles, porém, foi capaz de penetrar o coração dos trabalhadores. O desprestígio das esquerdas no país era evidente.
Em 1953, o radicalismo político começou a tomar corpo: parte da oposição abandonou o projeto democrático e passou a recorrer ao terrorismo. O principal desses grupos oposicionistas era o Movimento de Intransigência e Renovação (MIR). Desde então, as manifestações e comícios peronistas tornaram-se palco de guerra. Mas a derrocada de Perón viria de onde menos se esperava: a igreja católica e a Marinha.
Os católicos, mesmo sensíveis aos avanços do Estado no campo da caridade e do assistencialismo, passaram a questionar a forma como Perón se apoiava no discurso religioso para o culto laico de sua personalidade, além do controle que ele exercia nos meios estudantis. Em resposta, o presidente aprovou a lei do divórcio e suprimiu o ensino religioso nas escolas. Esse conflito foi mal digerido pelos peronistas mais alinhados com os valores cristãos.
Em 16 de junho daquele ano, o alto escalão da Marinha pôs em ação um projeto afoito de bombardear a Casa Rosada (sede do governo) e assassinar Perón. A execução culminou num desastre, com bombas e tiros na praça de Maio, onde havia uma manifestação de apoio ao presidente. Mais de trezentas pessoas morreram.
Perón não contava com essa ameaça, tendo em vista que as Forças Armadas apoiaram seu governo. Mas o alto escalão da Marinha era composto por oficiais da oposição radical. Depois do atentado, Perón renunciou ao cargo e foi para o exílio, de onde só voltaria após 18 anos.
Evita Perón: a paixão segundo os argentinos
Para os argentinos, Evita foi única e incomparável. Atriz de teatro pouco conhecida, tornou-se primeira-dama e personificou duas características centrais na formação da cultura política peronista: a caridade e a justiça social.
O encanto de Eva alimentava-se tanto de sua juventude quanto de sua determinação em ocupar um espaço político até então restrito, o que fez dela uma liderança simbólica da nação: “Dizem que estou me desgastando, pois eu acho que estou me desgastando muito pouco para um povo tão extraordinário como este!”.
O peronismo não baseava seu poder nas instituições tradicionais da República Argentina, mas nos sindicatos e num dispositivo cultural e propagandístico de grande magnitude. Para isso, Evita exerceu um papel central no longo governo de seu marido. Formalmente, a Fundação Eva Perón era uma instituição pública do governo; na prática, porém, era um braço do Estado, essencial para que Perón ampliasse sua base de apoio para além dos limites do sindicalismo. A Fundação foi responsável por criar escolas, lares para idosos e centros médicos, além de distribuir alimentos e presentes nas datas festivas. Evita logo se tornou a encarnação do Estado benfeitor e previdente, que adquiriu uma dimensão pessoal e sensível.
Milhões de argentinos se reconheceram nela, porque a viram agir e porque sentiram os efeitos reais e simbólicos de seus atos. Muitas fotografias mostram Evita abrindo as cartas que a todo instante chegavam à Fundação. Os pedidos vinham dos cantos mais remotos e eram atendidos de acordo com um padrão de distribuição de bens, que incluía máquinas de costura, colchões, óculos, dentaduras e até bolas de futebol. Muitas vezes, Evita ia pessoalmente fazer as entregas e se colocava radiante entre os pobres. O peronismo, afinal de contas, era uma fórmula antirrepublicana de personalizar o poder em Evita e Perón e, assim, preencher o vácuo da democracia.
Eva Perón sofria de câncer, e a doença, que a consumiu aos poucos, parecia acentuar suas feições: o rosto ficou mais anguloso, as mãos, mais finas, e os ombros, saltados. Quando morreu, em 1952, com apenas 33 anos, nasceu a importância de seu corpo como símbolo. Para manter acesa a mística, seria preciso conservar sua beleza. Seu corpo inicialmente foi velado no Ministério do Trabalho; depois, seguiu para o Congresso Nacional, onde ficou por 14 dias e foi visto por dois milhões de pessoas. Durante esse período, os médicos aproveitavam o período da noite para completar o processo de embalsamamento.
Evita tornou-se um dos símbolos mais importantes da cultura política argentina. Com o golpe militar de 1955, o cadáver de Evita foi sequestrado pelos militares e ficou escondido por 18 anos. Hoje, seus despojos repousam no cemitério da Recoleta, em Buenos Aires.
O peronismo sem Perón encontra Che Guevara: surge a luta armada na Argentina
A deposição de Perón por um golpe de Estado, em setembro de 1955, deixou marcas profundas na história política da Argentina. A sociedade se dividiu radicalmente entre peronistas e antiperonistas. O governo do general Pedro Eugenio Aramburu (1955-1958), empossado pelos golpistas dois meses após o movimento, levou a extremos a perseguição ao peronismo.
Com o objetivo de apagar da vida argentina a memória de Perón, seu governo declarou ilegal qualquer manifestação ou prática que fizesse referência ao ex-presidente exilado. Era simplesmente proibido falar nos nomes de Perón e Evita ou citar o Partido Justicialista — fundado por Perón em 1947.
Ao mesmo tempo, Aramburu reprimiu fortemente o movimento sindical e as lutas dos trabalhadores. Por isso, a década que vai da deposição de Péron a meados dos anos 1960 foi de profunda instabilidade e violência no país. Mas foi também uma época de resistência dos trabalhadores, organizados em sindicatos.
O novo governo, militarizado e autoritário, enxergava no movimento operário um inimigo a ser combatido e um fator de perturbação da ordem. Interveio na CGT, afastou da cena política os líderes sindicais ligados ao peronismo, nomeou interventores nos sindicatos e impôs a regra de que só poderia haver uma única associação sindical por categoria profissional.
Mas os sindicatos não se dobraram: defenderam seus direitos e se opuseram ao governo por meio das greves — em geral reprimidas —, da sabotagem industrial e da participação nas eleições das empresas a partir de 1957. Foi o período do movimento operário argentino posteriormente chamado de “etapa da resistência”.
O sindicalismo argentino via-se também profundamente dividido. Além dos peronistas, lideranças socialistas e liberais disputavam as atenções dos trabalhadores e o controle das organizações sindicais. O Partido Comunista Argentino, por sua vez, logo se aproximaria dos peronistas para criar o Movimento de Unidade e Coordenação Sindical.
Outra forma de resistência dos peronistas nesse período foi a ação armada. A partir de 1956, começaram a surgir por todo o país os comandos da resistência, ligados diretamente ao ex-presidente, que mesmo no exílio preparava o terreno para seu retorno. Na correspondência trocada entre o Perón e esses grupos, o ex-presidente estimulava a luta armada: “é necessário pensar que estamos na guerra, e é necessário proceder como na guerra”.
Paralelamente, Perón também fazia política eleitoral. Nas eleições presidenciais de 1958, que marcaram o fim do governo de Aramburu, o ex-presidente orientou seus partidários a apoiarem Arturo Frondizi, um dissidente dos radicais que em 1957 fundara a União Cívica Radical Intransigente (UCRI). Até a derrubada do governo de Frondizi pelos militares, em 1962, os sindicatos peronistas voltariam à cena pública, organizando uma série de greves contra a política econômica do presidente que haviam ajudado a eleger.
Entre os anos 1950 e 1960, outros grupos armados peronistas se formaram na Argentina com o objetivo de reconduzir o ex-presidente ao poder ou até mesmo fazer uma revolução. Era o início do “peronismo sem Perón”, que teve nos montoneros, na década de 1970, sua expressão mais forte.
Antes disso, porém, algumas experiências singulares foram importantes na configuração do que ficou conhecido como “peronismo armado”. As ações de maior expressão foram articuladas na província de Tucumán, noroeste do país e a mais de mil quilômetros de Buenos Aires. Nessa região, atuava o Exército Peronista de Libertação Nacional (EPLN), que entrou para a história por ter realizado a primeira guerrilha rural no país, ainda no fim da década de 1950. O grupo Uturuncos, como ficou conhecido, surgiu pela atuação de dois dirigentes: Félix Serravalle e Manuel Mena, este último responsável por conectar Tucumán ao Comando Nacional Peronista de Buenos Aires, liderado por John William Cooke.
Em 1959, ano da Revolução Cubana, os uturuncos já haviam estabelecido uma extensa rede de contatos nas regiões em torno da cidade de Tucumán e de outras mais distantes, como Jujuy, Salta e Catamarca. Essa rede compreendia, também, políticos peronistas destituídos de suas funções pelo golpe de 1955.
Os uturuncos realizavam ações de pequeno porte mas com grande significado político. Em 1958, por exemplo, quando os militares iam exibir um filme que desvirtuava a aura mística de Evita Perón, eles roubaram os rolos da película e os enviaram de presente para Perón, que então vivia no Panamá. Ainda naquele ano, durante as eleições presidenciais, um grupo liderado por Félix Serravalle tomou de assalto uma estação geofísica em Tucumán e confiscou seus equipamentos, com a intenção de criar uma emissora de rádio clandestina chamada Pátria Livre. Em outra oportunidade, os uturuncos, como sinal de apoio à Revolução Argelina, da qual eram admiradores, incendiaram um avião francês.
Após o triunfo da Revolução Cubana, a luta armada entrou na ordem do dia das esquerdas latino-americanas. Quando Che Guevara conheceu Fidel Castro na Cidade do México, em 1956, deixou claro que iria para Cuba desde que não fosse impedido de fazer a revolução na América Latina — principalmente no país em que nascera.
Ainda na serra Maestra, em 1958, Guevara conheceu o jornalista argentino Jorge Masseti. Após o golpe que derrubou Frondizi, em 1962, os dois articularam a criação de um foco guerrilheiro no norte do país — era o surgimento do Exército Guerrilheiro do Povo (EGP).
Treinado em Cuba e na Argélia, Jorge Masseti arregimentou alguns dissidentes dentro das organizações de esquerda, principalmente jovens universitários. A região escolhida para formar o foco guerrilheiro foi a de Salta, na província de Tucumán. A expectativa era que o foco guerrilheiro se instalasse na área para depois receber Che Guevara. Ali, onde se realizavam treinamentos militares, havia também uma rede clandestina responsável por recrutar militantes.
Abalada por conflitos internos, isolada das cidades e distante das demais forças de esquerda, a guerrilha de Salta acabou em tragédia. Em setembro de 1963, os militantes lançaram um manifesto na revista “Compañero”. Embora tivesse pouca visibilidade, a publicação atraiu a Polícia Federal, que rapidamente descobriu a localização das células guerrilheiras e cercou os militantes em abril de 1964. Dois dos principais dirigentes do EGP, Hermes Peña e Jorge Guille, foram mortos, e os outros, presos. Jorge Masseti fugiu para a floresta de Salta e desapareceu. Futuramente, todos os presos denunciariam haver sofrido torturas físicas e psicológicas.
Apesar do fracasso, a experiência de Salta deve ser compreendida como parte de uma estratégia continental que abriu caminho para as organizações políticas inspiradas pela experiência cubana. Assustadoramente, ela parecia antever o que aconteceria com o próprio Che, três anos depois, na Bolívia.
Literatura
Livro: "Nuevos Cuentos de Bustos Domecq" (1977)
Autores: Jorge Luis Borges (1899-1986) e Adolfo Bioy Casares (1914-1999), Argentina
Bustos Domecq é um heterônimo de Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares, inventado quando os dois se conheceram em Buenos Aires. Na ocasião, década de 1930, Borges já era conhecido como poeta, enquanto Bioy dava seus primeiros passos na literatura.
Os contos e crônicas de Bustos Domecq incorporam dois dos elementos fundamentais da obra de Borges: a sátira e a ironia. São, sobretudo, histórias curtas que narram, sob um olhar crítico, aspectos cotidianos da sociedade argentina, que passou por um intenso processo de modernização econômica a partir dos anos 1946, com o governo Juan Domingo Perón.
Em seus livros, Borges pouco falou a política argentina. Além de alguns fragmentos autobiográficos — como em “Elogio de la Sombra” — e alguns contos específicos, foi com Bustos Domecq que ele expressou, juntamente com Bioy, suas fortes críticas ao governo de Perón, em especial na crônica “La Fiesta del Monstruo”. Nesse relato, somos conduzidos aos bastidores de um comício peronista realizado na praça de Maio, em que o narrador, movido pelo mais “são patriotismo”, retrata aspectos flagrantes da intensa radicalização política que marcou o período.
Narrado em primeira pessoa, o evento é caracterizado por pancadarias, tropas de choque e cantorias. Tudo isso desemboca na execução a pedradas de um judeu — e aqui fica clara a associação entre peronismo e nazifascismo — que, por acaso, atravessa o comício e se recusa a reverenciar o estandarte com a imagem de Perón.
O antiperonismo de Borges era extremo. A brutalidade satírica desse conto encontra seu desfecho com o início do comício, quando a massa se posiciona para o que viria em seguida: “a palavra do Monstro”.
Sugestões de leitura
- “Los Siete Locos” (1929) — Roberto Arlt
- “La Invención de Morel” (1940) — Adolfo Bioy Casares
- “Sobre Héroes y Tumbas” (1961) — Ernesto Sábato
- “Rayuela” (1963) — Júlio Cortázar
- “El Limonero Real” (1974) — Juan José Saer