Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, interior de Minas Gerais. Teve formação cultural erudita, aprendeu vários idiomas, cursou Medicina e tornou-se diplomata. Em 1946, com 38 anos, publicou seu primeiro livro de contos: “Sagarana”. Dez anos depois apareceram “Corpo de Baile”, também de contos, e seu único romance, “Grande Sertão: Veredas”.
A primeira coisa que chama a atenção na leitura de Guimarães Rosa é a linguagem. A fala dos seus personagens não existe: é inventada por ele, que misturou uma fala muito letrada à linguagem sertaneja, temperando-a com uma série de transgressões. Por exemplo, a “bala beijaflorou”; ou “ela beladormeceu”; ou ainda “Nonada!”.
Guimarães Rosa fez, pela via da linguagem, uma mediação entre duas culturas: o legado erudito brasileiro e a tradição dos que moram nos fundos do país, que só costumam ser destacados pela falta e pela privação e lembrados pela negativa — os excluídos, os párias, os catrumanos, como nomeou Guimarães Rosa. Eles não são apenas os sertanejos do norte de Minas Gerais: representam os moradores do Brasil, um “país de mil-e-tantas-misérias”.
Pela via da linguagem, é possível constatar que o pano de fundo da obra de João Guimarães Rosa são os grupos apartados da República brasileira. Pela via da linguagem por ele inventada, essa gente tem oportunidade de usar a palavra e aceder à História.
Murilo Rubião foi uma aventura solitária na literatura brasileira. Embrenhou-se na carreira jornalística e na burocracia do serviço público, chegando a ocupar a chefia de gabinete de Juscelino Kubitschek no governo de Minas Gerais. Antes disso, em 1947, publicara “O Ex-Mágico”, seu primeiro livro de contos.
Foi um desconcerto: a crítica não encontrou parâmetros para situar Murilo Rubião na literatura brasileira. Tateando no escuro, tentaram dar nome ao novo: Murilo Rubião foi chamado de surrealista, impressionista, suprarrealista e simbolista. Um dos críticos chegou a sugerir que ele escrevia sob efeito de entorpecentes. Outros apontaram paralelos entre sua obra e a de Jorge Luís Borges, Julio Cortázar (argentinos), Juan Rulfo (mexicano) e Franz Kafka (tcheco).
Em narrativas extremamente cuidadosas com a linguagem, surgem elementos mágicos que não causam espanto nem alteram o fluxo da história. Em “Teleco, o Coelhinho”, por exemplo, o narrador conversa naturalmente com o coelho, sem o deslumbramento de Alice quando chega ao País das Maravilhas. No conto “O Ex-Mágico”, o narrador que “não encontrava a menor explicação para sua presença no mundo” vê seus poderes mágicos desaparecerem depois que ele se torna funcionário público, submetido à tediosa e insensata rotina do trabalho burocrático.
As críticas à máquina estatal, à burocracia e a outros problemas da vida nas cidades grandes permeiam suas histórias.
Entre as décadas de 1940 e 1960, dois escritores em especial conquistaram o público brasileiro: Jorge Amado e Érico Veríssimo. Este último, nascido no Rio Grande do Sul, escreveu mais de trinta livros, traduzidos para vários idiomas, do inglês ao finlandês, e se consagrou principalmente com o romance “O Tempo e o Vento”.
O sucesso da obra chega a ser surpreendente, considerando que ela se divide em três partes, distribuídas em sete volumes: “O Continente” (dois volumes, 1949), “O Retrato” (dois volumes, 1951) e “O Arquipélago” (três volumes, 1961-1962).
O fio condutor da narrativa é a genealogia da família Terra Cambará, cuja trajetória se mistura aos grandes acontecimentos que formataram a cultura e a tradição gaúchas, como a Guerra da Cisplatina, a Revolução Farroupilha, a Guerra do Paraguai, a Revolução Federalista e a Revolução de 1930.
Em “O Tempo e o Vento”, Érico Veríssimo compõe um vasto painel sobre a formação histórica do Rio Grande do Sul, desde a época das missões religiosas, no século 18, até o fim da Era Vargas, em 1945. Ao mostrar as origens, as lutas e o crescimento da fictícia cidade de Santa Fé, Érico romanceia a formação histórica do Rio Grande do Sul à luz de sua diversidade e identidade cultural.
A memória é considerada um dos elementos centrais na constituição do sentimento de identidade, tanto o individual quanto o coletivo. Graciliano Ramos, com “Memórias do Cárcere”, forjou um repertório capaz de questionar a memória construída sobre a história de um período: a Era Vargas.
Trata-se de um testemunho dos dez meses em que Graciliano ficou preso, sem nenhuma acusação formal, entre 1936 e 1937, narrando o dia a dia dos presos e as condições desumanas a que eles eram submetidos.
O romancista de Alagoas fora preso em casa, passara por um navio-prisão e diversas delegacias até ser enviado para a Colônia Correcional Dois Rios, na Ilha Grande, litoral do Rio de Janeiro. Ao longo desse percurso, compartilhou espaços e experiências com intelectuais, militantes políticos e presos comuns.
Publicado postumamente em quatro volumes pela editora José Olympio, “Memórias do Cárcere” fez sucesso imediato — vendeu 10 mil exemplares em 45 dias — e, com o tempo, tornou-se um clássico da literatura brasileira.
Na obra, o cárcere é sinônimo de desumanização e desrespeito à vida humana. “Memórias do Cárcere” talvez seja o mais contundente testemunho da violência cometida pela polícia política de Vargas.
Um exame acurado da produção literária brasileira não fugirá da constatação de que pouco se escreveu sobre a escravidão ou sobre os escravizados. Esse silêncio diz muito sobre como imaginamos a nossa formação e sobre como construímos os alicerces de nossa nacionalidade.
Com isso em mente, o poeta Augusto Frederico Schmidt alegou que “não se terá escrito sobre a escravidão no Brasil, até hoje, nada mais impressionante do que alguns dos capítulos de ‘A Menina Morta’”. Naquele ano de 1954 foi lançado o livro de Cornélio Penna, ambientado numa fazenda às margens do rio Paraíba (São Paulo), às vésperas da Abolição.
“A Menina Morta” é um romance de atmosfera que mergulha na vida interior dos cativos e dos senhores, representando de forma realista a complexidade social dos momentos finais da escravidão. Se Castro Alves toma emprestadas as asas do albatroz para observar, à distância, o drama dos cativos num navio negreiro, Cornélio Penna analisa a realidade externa a partir do interior dos personagens.
O enredo tem início com a morte de uma menina, cuja lembrança é constantemente evocada pelos personagens, tornando-a sempre presente — um fantasma. Ela era filha dos senhores da casa-grande e muito querida pelos cativos: era o elemento conciliador entre os dois mundos.
“A Menina Morta” simboliza um projeto de liberdade que nasceu morto, uma vez que a Abolição não foi capaz de solucionar a pesada herança de mais de 300 anos de escravidão.
“O Encontro Marcado” mistura memória e ficção, numa narrativa que destaca o alter ego do autor Fernando Sabino, representado pelo personagem central Eduardo Marciano. Lançado em 1956, o romance, em sua maior parte, é ambientado na Belo Horizonte dos anos 1940, onde Juscelino Kubitschek lançara-se no mundo da política e fazia da capital mineira um cartão-postal da modernidade.
Percorrendo os salões, os cafés, as confeitarias, o complexo da Pampulha, as praças e os viadutos, os personagens de “O Encontro Marcado” simbolizam a geração que viveu numa época de transição e incertezas: Eduardo e seus amigos de colégio passam horas na praça da Liberdade, “afiados para puxar uma angustiazinha”. Estavam diante do futuro promissor de uma cidade provinciana que se lançava à modernidade.
A história termina com um prognóstico: “de tudo ficaram três coisas: a certeza de que ele [o futuro] estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança. Fazer do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro”.
A literatura do Centro-Oeste passou a ser levada a sério no Brasil a partir de 1944, quando Bernardo Élis publicou o livro de contos “Ermos e Gerais”. Foi a obra inaugural da literatura sertaneja goiano-mineira, que mais tarde revelaria Guimarães Rosa, José J. Veiga e Mário Palmério para a literatura nacional.
Bernardo Élis foi um escritor engajado, militou no PCB e fez de sua literatura uma forma de dar visibilidade literária à histórica luta dos camponeses pela terra, que nos anos 1950 e 1960 irrompeu de forma explosiva no cenário político nacional.
Em “O Tronco”, publicado em 1956, ele fala do abandono das populações sertanejas, entregues ao mandonismo de coronéis. Num cenário marcado por pequenos povoados de “casinhas caiadas de branco”, que exalavam “tristeza e abandono”, o escritor goiano faz uma crônica das relações sociais marcadas pela violência e por injustiças de toda ordem.
Incorporando elementos da oralidade e outros aspectos caros à gente mais simples, Bernardo Élis representa em suas obras um sertão que, de tão cheio de ambiguidades, parece ser do tamanho do Brasil. De forma mais ampla, sua literatura transita entre a esperança e a desilusão, entre o desejo de revolução armada dos camponeses e um pessimismo radical, ancorado nas raízes do coronelismo.
“Num país em que pouco se lê, e em que o livro está custando os olhos da cara, é impressionante a procura por ‘Gabriela’. Por que isso?”. A indagação, publicada no jornal carioca “Diario de Notícias” em fins de 1959, nasceu do assombro diante do sucesso editorial de “Gabriela, Cravo e Canela”, cujas edições vinham se esgotando sucessivamente desde a publicação, no ano anterior.
A obra é um retrato do Brasil e exalta o que parte da intelectualidade da época considerava o melhor do povo brasileiro: a sensualidade, a mestiçagem, a cordialidade e a alegria. Das crianças que moravam nas ruas (“Capitães da Areia”, 1937) aos afrescos pintados nas regiões do cacau (“Terras do Sem-fim”, 1943), do bêbado que por duas vezes se encontrou com a morte (“A Morte e a Morte de Quincas Berro d’Água”, 1961) à exaltação heroica de Luís Carlos Prestes (“O Cavaleiro da Esperança”, 1942), Jorge Amado sempre buscou ser um intérprete do povo brasileiro.
Por isso, “Gabriela, Cravo e Canela” ocupa um lugar de destaque na sua produção, num momento em que ele se afastava do PCB e experimentava maior liberdade criativa. Nesse romance, o Brasil é mestiço e alegre. Foi um dos livros que fizeram de Jorge Amado o autor brasileiro mais traduzido no mundo até então.
Entre 1960 e 1964, Clarice Lispector publicou os três livros que a transformariam numa das maiores escritoras do país: “Laços de Família” (1960), “A Legião Estrangeira” (1964) e “A Paixão segundo G.H.” (1964).
Os dois primeiros reúnem contos cuja figura central é a mulher, como mãe e esposa, inicialmente atada pelos laços convencionais da lógica familiar. Essa convenção é posta em xeque em “Laços de Família”, quando as personagens passam por situações que revelam os limites de sua condição.
Depois dessas revelações, as mulheres chegam a um novo patamar existencial, “A Legião Estrangeira”, no qual tudo está intimamente ligado e não pode ser reduzido nem classificado. Isso se dá pela forma como Clarice trabalha a linguagem, revelando um cotidiano enigmático, em estado de graça, de modo que as coisas e as pessoas se tornem plenas de si mesmas.
Em “A Paixão segundo G.H.” — comparado por muitos críticos a “Moby Dick”, de Herman Melville, e ao conto “O Aleph”, de Jorge Luis Borges — Clarice parte de um enredo simples: uma dona de casa (chamada apenas de G.H.) encontra uma barata dentro de um armário e a esmaga. Diante disso, descobre que não é capaz de encontrar esperança e beleza no mundo e que nós, humanos, somos feitos daquela mesma substância branca e pegajosa. A barata, que independente do sexo biológico é sempre feminina em português, simboliza a crise da existência humana.