A rosa do povo

“A Rosa do Povo” é uma coletânea de poemas escritos pelo poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade entre 1943 e 1945. Em cópias remetidas a amigos, muitos desses poemas correram o Brasil clandestinamente antes de serem reunidos e publicados. São versos eminentemente políticos, que constituem uma leitura crítica do poeta acerca da ditadura do Estado Novo e da conjuntura internacional, já que o mundo vivia os desdobramentos da Segunda Grande Guerra.

A importância de “A Rosa do Povo” reside principalmente no tenso diálogo do eu lírico de Drummond com as questões centrais de sua época. Nele, o poeta supera o lirismo individualista de seus livros anteriores para representar a solidão irremediável de um novo eu lírico, com os olhos voltados para as questões de seu tempo. No poema “A Flor e a Náusea”, a condição individual e a contradição social pesam, fazem o poeta responsável pelo mundo:

“Preso à minha classe e a algumas roupas, 
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?” Era um “tempo partido, tempo de homens partidos”.

Drummond em imagem de 1959. Com “A Rosa do Povo”, o poeta engajou-se nas grandes questões de sua época
(Foto: Marcel Gautherot/ Instituto Moreira Salles)
Capa de Tomás Santa Rosa para a primeira edição (1945) de “A Rosa do Povo”

Noigandres

A poesia concreta foi concebida para ser a integração entre o som, a visualidade e o sentido das palavras — palavras essas que deveriam ganhar materialidade, tornar patente o objeto em vez de apenas representá-lo. A poesia concreta encerrou a expressão subjetiva das palavras que se deslocam do seu objeto: que se dizem ser “flor” sem ser flor, efetivamente.

Três nomes corporificaram a poesia concreta no Brasil: os irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari. O movimento se desenvolveu em torno da revista “Noigandres”, criada em 1952 para publicar os textos ligados ao grupo, que logo se tornou nacionalmente reconhecido. Foi uma revista importante, principalmente se considerarmos a utilização dinâmica dos recursos tipográficos: era preciso diferenciar o tamanho dos caracteres do poema conforme suas diferentes entonações, construir os “espaços em branco” para dar forma imagética aos versos e dispor de total liberdade para distribuir as palavras.

Pode-se dizer que havia uma similitude entre os fundamentos da poesia concreta e o clima político da época, uma vez que compartilhavam as noções de planejamento, integração, modernização e objetividade. Não por acaso, o Plano Piloto de Brasília emprestou seu nome aos concretistas, que em 1958 elaboraram o “Plano Piloto da Poesia Concreta", publicado na revista.

Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto Campos, os três maiores expoentes da poesia concreta, em foto da década de 1950
(Foto: Acervo Carmem Arruda de Campos)
Poema “Beba Coca-Cola”, de Décio Pignatari, e capas de “Noigandres”
(Imagens: Acervo Carmem Arruda de Campos)

Romanceiro da Inconfidência

A inspiração para Cecília Meireles escrever o “Romanceiro da Inconfidência” nasceu quando ela visitou Ouro Preto numa Semana Santa. Anos mais tarde, revelaria: “Deixei Ouro Preto — e seguiram comigo todos os seus fantasmas”. Publicado em 1953, “Romanceiro…” está repleto desses fantasmas adormecidos pelo tempo da história. Um deles era o de Bárbara Heliodora que, “transparente de água e lua/ velha poeira em sonho de asa/ move seu débil fantasma/ entre o túmulo e a memória”.

O livro é composto por 107 poemas, distribuídos em três partes principais: o cenário de Vila Rica antes dos inconfidentes; a Conjuração Mineira, do início do movimento até o enforcamento de Tiradentes; e, por fim, as consequências da conjuração sobre vários de seus personagens, como Tomás Antônio Gonzaga, Bárbara Heliodora, Alvarenga Peixoto e Cláudio Manuel da Costa.

Transitando entre diferentes tendências e estilos, Cecília Meireles é considerada uma das escritoras mais ecléticas da língua portuguesa. Para contar a história da Conjuração Mineira, dedicou anos de sua vida à pesquisa histórica, recorrendo ao gênero romanceiro pra escrever um poema épico de caráter popular e grande força evocativa.

Na obra, versou sobre temas universais, principalmente a “liberdade — essa palavra/ que o sonho humano alimenta:/ que não há ninguém que explique,/ e ninguém que não entenda!”

Cecília Meireles em 1959, declamando poemas em um encontro
(Foto: Conteúdo Estadão AE)
Capa da primeira edição do “Romanceiro da Inconfidência”, publicado em Portugal, 1953
(Imagem: Reprodução)

Morte e Vida Severina

O pernambucano João Cabral de Melo Neto aprendeu a admirar o vento nos canaviais dos engenhos da família, onde passou parte da infância e da adolescência. Diplomata, morou no exterior por 40 anos, período em que remediava a saudade com sua poesia austera, mesclada com elementos da cultura popular, da qual nunca se afastou.

Prova maior dessa preocupação foi sua obra mais famosa, lançada em 1956: “Morte e Vida Severina”. É um longo poema narrativo que carrega o peso do momento histórico em que foi concebido — os anos 1950, marcados, no Brasil, pela intensificação das lutas pela terra e pela melhoria das condições de vida das populações mais pobres. O Brasil olhava para dentro de si mesmo, e a imaginação cultural da época carregava as marcas desse resgate, com o qual também contribuiu.

“Morte e Vida Severina” conta a história do retirante Severino, que viaja do Agreste, onde nasceu, até o Recife. João Cabral se coloca ao lado dos homens de vida severa, que não têm nome próprio:

“[...] e se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia”.

Em 1990 João Cabral de Melo Neto ganhou o Prêmio Camões, o mais importante da literatura em língua portuguesa.

O poeta João Cabral de Melo Neto e a atriz Odete Lara, em noite de autógrafos
(Foto: Fundo Última Hora/Apesp)
Capa de Carybé para “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto

Viagem a São Saruê

Os autores de cordel são poetas populares do Nordeste brasileiro que, segundo a crença, receberam o dom divino para falar em nome do povo mais humilde. Esse gênero literário, que nascera na Península Ibérica contando aventuras e romances de príncipes e princesas, chegou ao Brasil no século 18. Aqui, fincou raízes na cultura popular do Nordeste, onde se consagrou nas improvisações dos repentistas e ganhou uma tradição imagética na arte dos gravuristas.

Um dos grandes nomes do cordel foi o paraibano Manuel Camilo dos Santos, que encheu o sertão de histórias ao longo das décadas de 1930 a 1950. Defensor ardoroso dos cordelistas, era dono de sua própria gráfica, primeiro em Guarabira e depois num bairro pobre de Campina Grande. “Viagem a São Saruê” é um retrato vivo da fuga do povo sofrido em busca de um sonho.

O país de São Saruê, terra da promissão, é um lugar utópico em que as necessidades do povo nordestino são atendidas e satisfeitas, onde correm “rios de leite”, tal como profetizou Antônio Conselheiro, onde as “pedras são queijo e rapadura” e o “feijão nasce no mato”:

“Tudo lá é bom e fácil
não precisa se comprar,
não há fome e nem doença
o povo vive a gozar
tem tudo e não falta nada
sem precisar trabalhar.”

Capa de uma das edições de “Viagem a São Saruê”, impresso na gráfica do autor
Xilogravura do artista Ciro Fernandes em homenagem ao cordel “Viagem a São Saruê”

Compêndio para o uso dos pássaros

Manoel de Barros foi o maior expoente da literatura mato-grossense. Compartilhando com a Geração de 45 o ideal de abrir o regional para o universal, revelou que fora criado “no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas humildes, aves, árvores, rios”. De toda sua “vivência do chão”, fez poesia.

Foi para o Rio de Janeiro estudar e por lá ficou durante quarenta anos. Conheceu Guimarães Rosa, que se tornou uma influência marcante em sua poesia. Nos passeios que faziam pelo Rio, iam juntos ao zoológico — ele falava de suas saudades do Pantanal, enquanto Guimarães Rosa ficava na frente dos bichos, anotando seus gestos, olhares e cheiros. Militou no Partido Comunista Brasileiro (PCB) até o momento em que Luís Carlos Prestes decidiu apoiar Vargas. Decidiu então voltar para o Pantanal.

“Compêndio para Uso dos Pássaros” foi publicado em 1960, quando o poeta retornava às suas origens, reencontrando-se com os dialetos de sua gente e com a exuberância do Pantanal. Nesse livro, a influência do amigo Guimarães Rosa é flagrante: Manoel de Barros fala dos pássaros como se fosse Diadorim. Para ele, “o pantaneiro é muito imaginoso, porque vive num lugar distante, sozinho, onde a ausência das coisas é muito maior do que a presença”.

O poeta Manoel de Barros em sua casa de Campo Grande (MS), em imagem de 1997
(Foto: Éder Chiodetto/Folhapress)

Estrela da Tarde

Nascido no Recife, Manuel Bandeira teve diagnosticada sua tuberculose ainda na infância — como gostava de dizer, era um “tísico profissional”. A necessidade de tratamento levou sua família a transferir-se para o Rio de Janeiro. Com a morte precoce sempre à espreita, não pôde realizar alguns de seus sonhos — nem os de seu pai, que o criou “desde menino para arquiteto”. Decidiu fazer poesia e nela percebe-se que vai morrendo aos poucos, verso por verso.

Bandeira entrou para a história por não se conformar com a métrica parnasiana, tendo-se declarado “farto do lirismo comedido/ do lirismo bem-comportado/ do lirismo funcionário público”. Foi considerado o líder natural do modernismo carioca e começou a se consagrar com a publicação de “Libertinagem”, em 1930. Trinta anos depois, aos setenta anos, publica “Estrela da Tarde”, livro no qual medita mais profundamente sobre os três temas que perpassam sua obra: a infância, o amor e a morte.

Nesse livro, Bandeira homenageia vários de seus colegas poetas, como o “lúcido e límpido” Carlos Drummond de Andrade. Relembra com nostalgia do Recife de sua infância, ao qual, mesmo não existindo mais, o poeta carrega com saudade: “nos ossos, nos olhos, nos ouvidos, no sangue, na carne”.

Atento às tendências contemporâneas, Manuel Bandeira arriscou-se na poesia concreta para, enfim, construir o seu “Programa para a Morte”, como se pudesse ter controle sobre ela.

Manuel Bandeira visita a 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta, em São Paulo, 1957
(Foto: Acervo Carmem de Arruda Campos)
O poeta Manuel Bandeira em sua casa,
1954
(Foto: Fundo Última Hora/Apesp)
“Estrela da Tarde”: capa da primeira edição (1960)

Quem matou Aparecida, história de uma favelada que ateou fogo às vestes

Uma das características marcantes da obra de Ferreira Gullar é o enlace entre o destino de cada um e o de muitos. Desde seus primeiros poemas, Gullar foi um experimentador de estilos, temas e formas linguísticas. Sua poesia mais explicitamente política foi produzida nos anos 1960, quando esteve à frente do departamento de literatura do Centro Popular de Cultura (CPC) do Rio de Janeiro.

Recuperando a tradição dos cantadores nordestinos, produziu dois romances de cordel: “João da Boa Morte: Cabra Marcado para Morrer” e “Quem Matou Aparecida?” — que tem o subtítulo “A história de uma favelada que ateou fogo às vestes”. Nesses dois poemas, que podem ser considerados cartilhas de alfabetização política, Gullar assumia o compromisso declarado dos CPCs: educar o povo para a luta por mudanças sociais.

“Quem Matou Aparecida?” conta a trágica história de uma favelada cuja vida de pobreza e abandono termina com o suicídio. A justificativa para a morte de Aparecida encerra o poema, elucidando o projeto político de parte das esquerdas da época:

“Se não descobres te digo
para que possas saber:
o mundo assim dividido
não pode permanecer.
Foi esse mundo que mata
tanta criança ao nascer, 
que negou à Aparecida
o direito de viver.

Quem ateou fogo às vestes
dessa menina infeliz
foi esse mundo sinistro
que ela nem fez nem quis
— que deve ser destruído
pro povo viver feliz”.

O poeta Ferreira Gullar foi uma das maiores expressões da literatura engajada no período pré-golpe
(Foto: Lewy Moraes/Folhapress)
Ferreira Gullar, seus livros e o ofício de escrever, em foto de 1997
(Foto: Eder Chiodetto/MAM)

Violão de Rua: poemas para a liberdade

A coleção Cadernos do Povo Brasileiro resultou de uma parceria entre o Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE e a Editora Civilização Brasileira, dirigida por Ênio da Silveira. O lema da coleção sintetiza a proposta do projeto: “somente quando é bem informado é que um povo consegue emancipar-se”.

Os cadernos saíam no formato de bolso, com tiragem média de 20 mil exemplares — alta, para os padrões da época. Os autores eram, principalmente, intelectuais de esquerda ligados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) ou ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb).

Lançado em 1962, “Violão de Rua” teve a participação de poetas como Vinícius de Moraes, Ferreira Gullar e Afonso Romano de Sant’Anna e do arquiteto Oscar Niemeyer. Os versos evocavam o povo como única força capaz de regenerar a humanidade corrompida pelo capitalismo. Neles, os poetas mostravam-se sensíveis às difíceis condições de vida dos homens do campo e das favelas e sonhavam com mudanças — afinal, a revolução parecia estar no horizonte das esquerdas brasileiras naquela época.

Concebidos a partir da relação entre literatura e política, os poemas de “Violão de Rua: Poemas para a Liberdade” são uma amostra significativa da arte engajada do período que antecedeu o golpe de 1964.

Ênio da Silveira, um dos editores dos Cadernos do Povo Brasileiro, em imagem de 1957
(Foto: Folhapress)
Capa de “Violão de Rua: Poemas para a Liberdade”, edição extra da coleção Cadernos do Povo Brasileiro