Largo da Carioca, Rio de Janeiro, no início do século 20 (Foto: Iconographia)

Intérpretes do Brasil

Até as primeiras décadas do século 20, a maior parte da intelectualidade brasileira acreditava que um país cuja maioria fosse de negros recém-libertos e muitos índios, com poucos europeus brancos, não poderia dar certo. Para muitos, no calor dos trópicos não poderia florescer uma civilização. O Brasil era, portanto, um problema, um fiasco, um país fadado ao fracasso.

Na época, não tínhamos sequer uma universidade, apenas escolas isoladas de direito, medicina e engenharia. Não existia um local onde se fizesse uma análise sistemática e científica sobre nossa história e perspectivas.

Esse quadro, porém, marcado pelo fatalismo e pelo pessimismo, estava começando a mudar. Nos anos 1920, os modernistas inverteram o olhar e disseram que nossas deficiências eram, na verdade, o caminho para nossa identidade e afirmação; que, como antropófagos culturais, éramos capazes de aproveitar a experiência de europeus, índios, negros e outros povos para forjar uma nação misturada, criadora de um jeito diferente de viver e de ser.

Se, nos anos 1920, ainda eram poucos os artistas e escritores que pensavam assim, na década seguinte essa ideia seria predominante. O livro ”Casa-Grande & Senzala”, do pernambucano Gilberto Freyre, lançado em 1933, foi decisivo para essa mudança. Sua visão de democracia racial foi encampada pelo governo e amplamente divulgada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).

Igreja de São Francisco de Paula, Rio de Janeiro, início do século 20 (Foto: Iconographia)

A realidade brasileira era a grande preocupação do período. Os intelectuais tentavam compreender não só “como somos”, mas também “por que somos assim”. Duas outras obras também foram importantíssimas para fundar o pensamento social brasileiro no período: “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, lançada em 1936, e de “Formação do Brasil Contemporâneo”, de Caio Prado Júnior, publicada em 1942. Depois deles, uma geração de cientistas sociais sairia dos bancos das universidades brasileiras e ampliaria a nossa visão do país.

Os primeiros cursos de ciências sociais foram criados na década de 1930. Em 1933 foi fundada a Escola Livre de Sociologia e Política, na cidade de São Paulo. No ano seguinte, começou a funcionar o curso de ciências sociais na recém-criada Universidade de São Paulo (USP). Em 1935 foi a vez de a Faculdade de Filosofia da Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, criar seu curso de sociologia — que seria extinto durante o Estado Novo.

Professores estrangeiros — principalmente franceses, mas também norte-americanos e alemães —, além de formar no Brasil as primeiras turmas de intelectuais brasileiros com curso superior, também realizavam pesquisas, investigando diferentes aspectos de nossa sociedade.

Gravura de Debret retrata escrava e funcionário da corte de D. João 6º no Rio de Janeiro (Foto: Iconographia)

CASA GRANDE & SENZALA

O lançamento do livro de Gilberto Freyre, em 1933, causou um forte impacto na intelectualidade nativa. “Casa-Grande & Senzala” analisa a formação nacional a partir do desenvolvimento da zona canavieira de Pernambuco, privilegiando as questões culturais. Segundo Freyre, a monocultura açucareira e a falta de mulheres brancas foram determinantes para o nascimento do tipo de civilização criada nestas terras.

Ilustração de Cícero Dias para o livro “Casa-Grande & Senzala” (Foto: Reprodução)

Ainda segundo Freyre, a monocultura açucareira baseava-se não só na dominação patriarcal do senhor sobre os escravos, mas também sobre a família, os agregados e os homens livres que circulavam na sociedade. Por outro lado, a ausência de mulheres brancas resultou num desregramento, numa intimidade entre o português dominador e os dominados, pois muitos dos opressores copulavam com as escravas, produzindo filhos mestiços. Para o antropólogo, o senhor de engenho, todo-poderoso, era não só o chefe da família (unidade básica da nossa sociedade), mas também o centro de todo o sistema econômico, social e político brasileiro. Por isso, a civilização brasileira pode ter assimilado traços culturais dos negros e indígenas, mas sempre sob a liderança e o domínio do homem branco, do português.

Vencedores no sentido militar e técnico sobre as populações indígenas; dominadores absolutos dos negros importados da África para o duro trabalho da bagaceira, os europeus e seus descendentes tiveram entretanto que transigir com índios e africanos quanto às relações genéticas e sociais. A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos. Sem deixarem de ser relações — as dos brancos com as mulheres de cor — de ‘superiores’ com ‘inferiores’ e, no maior número de casos, de senhores desabusados e sádicos com escravas passivas, adoçaram-se, entretanto, com a necessidade experimentada por muitos colonos de constituírem família dentro destas circunstâncias e sobre esta base. A miscigenação que largamente se praticou aqui corrigiu a distância social que doutro modo se teria conservado enorme entre a casa-grande e a mata tropical; entre a casa-grande e a senzala. O que a monocultura fundiária e escravocrata realizou no sentido da aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos, com uma rala e insignificante lambujem de gente livre sanduichada entre os extremos antagônicos, foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação.
(Gilberto Freyre. “Casa-Grande & Senzala”)

Cena urbana na sede da corte, Rio de Janeiro, ilustração de Jean-Baptiste Debret (Imagem: Reprodução)

RAÍZES DO BRASIL

O livro de Sérgio Buarque de Holanda, lançado em 1936, procura desvendar os vários aspectos das nossas raízes históricas e culturais para abordar os dilemas da modernização brasileira. Para ele, o fato de sermos colonizados por um povo da Península Ibérica nos dotou de certas características, como o personalismo, a frouxidão da estrutura social e a falta de rigidez das hierarquias, nas quais o prestígio vale mais do que o nome herdado.

As características dos portugueses transmitidas às elites brasileiras seriam: a aversão ao trabalho e ao esforço pessoal, com a consequente apologia do ócio; a desorganização e o desleixo; a grande capacidade de adaptação; e a valorização das aparências e dos vínculos sentimentais (de parentesco e amizade) sobre a organização racional.

Ao contrário dos protestantes do norte da Europa, que enalteciam o trabalho e a organização racional, nossos colonizadores não contribuíram para a construção de uma sociedade moderna, pois desprezavam os esforços para alcançar a estabilidade e a segurança. Para o português e o espanhol, o que valia era o resultado imediato.

O que o colonizador buscou nestas terras, portanto, foi o sucesso sem esforço, a riqueza fácil, daí se adaptarem sem dificuldade ao que a terra oferecia, dormirem em redes e comerem mandioca em vez de pão. Daí também a naturalidade para usar os instrumentos de limpeza da terra e de caça e pesca dos indígenas, desconsiderando os padrões de cultivo e recuperação de solo empregados pelos ingleses na América do Norte.

O autor Sérgio Buarque de Holanda, no início dos anos 1930 (Foto: Iconographia)

Essa herança rural foi levada para as cidades, onde o patriarcalismo e personalismo não cederam espaço para a racionalidade do trabalho urbano. Predominou a mesma procura pelo ganho fácil, a mesma recusa ao esforço, o mesmo desprezo pelo trabalho manual, a mesma sociedade baseada nas relações pessoais, a mesma promiscuidade entre o público e o privado.

Analisando o país com os olhos no presente, Sérgio Buarque considerou que a abolição marcou o início da “nossa revolução”, porém percebeu que o personalismo resistia e que era preciso combatê-lo para alcançarmos uma verdadeira transformação, com a implantação de uma vida democrática no Brasil. A nossa repulsa pela hierarquia e a relativa ausência dos preconceitos de raça e cor seriam um dado positivo, que nos ajudaria a alcançar o desenvolvimento e a construir uma sociedade moderna.

A democracia no Brasil sempre foi um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos e privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas. E assim puderam incorporar à situação tradicional, ao menos como fachada ou decoração externa, alguns temas que pareciam os mais acertados para a época e eram exaltados nos livros e discursos.
(Sérgio Buarque de Holanda. “Raízes do Brasil”)

Chegada dos espanhóis à América, em gravura de Théodore de Bry (século 16) (Imagem: Iconographia)

FORMAÇÃO DO BRASIL CONTEMPORÂNEO

A obra de Caio Prado Júnior, lançada em 1942, faz uma análise do desenvolvimento do Brasil a partir da sua estrutura econômica e das relações de dominação e exploração do trabalho. Segundo livro do autor — lançara “Evolução Política do Brasil” em 1933 —,“Formação do Brasil Contemporâneo” procura entender o sentido da nossa colonização.

Para esse estudo, Prado Júnior investigou três aspectos da história colonial: o povoamento, a vida material e a vida social. Depois de examiná-los, expandiu seu entendimento sobre o sentido da nossa colonização. Segundo o autor, o período compreendido entre o final do século 18 e o início do 19 é decisivo na nossa história, por representar simultaneamente o epílogo e o ápice da época colonial. Entender esse período é, portanto, a chave para interpretar processo histórico que daí se desenrolaria.

Caio Prado Júnior em 1943 (Foto: Iconographia)

O ponto inicial, que teria dado o sentido da nossa colonização, foi a expansão marítima europeia do século 15. Essa expansão seria a parte visível de um processo mais profundo — a formação do capitalismo moderno. O autor explica a expansão do comércio e o colonialismo como parte da ascensão de uma classe social específica na Europa: a burguesia mercantil. A exploração do trabalho escravo e das riquezas do Novo Mundo são compreendidas como formas de acumulação de capital. Essa acumulação, para Prado Júnior, proporcionou o desenvolvimento do capitalismo na metrópole.

No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização nos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução histórica dos trópicos americanos.
(Caio Prado Junior. “Formação do Brasil Contemporâneo”)