1952 27 de junho
Itamaraty é alvo de caça às bruxas
João Cabral de Melo Neto é acusado de comunismo e perde cargo diplomático
O diplomata e poeta João Cabral de Melo Neto é acusado de práticas comunistas e obrigado a deixar o cargo de segundo secretário da embaixada do Brasil em Londres e voltar às pressas ao Rio de Janeiro, onde responderá a processo administrativo e criminal.
A delação partiu de outro diplomata, Mário Mussolini Calábria. Mário havia lido uma carta de João Cabral a Paulo Cotrim, também diplomata, lotado em Hamburgo (Alemanha). Na carta, João Cabral pedia a Cotrim um artigo sobre a economia brasileira para ser publicado numa revista ligada ao Partido Trabalhista inglês — e recomendava uso de pseudônimo.
Calábria não titubeou: denunciou os dois como comunistas ao ministro das Relações Exteriores, João Neves da Fontoura, que, convencido do ridículo da história, engavetou a denúncia.
O delator, porém, não desistiu. Despachou a denúncia para Carlos Lacerda, principal figura da oposição — seu jornal, “Tribuna da Imprensa”, de forma cada vez mais exaltada, vinha fustigando o governo com denúncias que, verdadeiras ou não, provocavam escândalos e comprometiam a administração de Vargas, desestabilizando o governo.
Lacerda acolheu as denúncias — para publicar à sua moda.
No dia 27 de junho de 1952, a “Tribuna da Imprensa” chegou às bancas com uma manchete escandalosa: “Traidores no Itamaraty”. O jornal denunciava a existência de uma célula comunista atuando no Itamaraty — à qual batizou de “a célula Bolívar” —, acusava João Cabral de ser seu principal dirigente e alertava às autoridades que o propósito da célula era pôr em funcionamento “uma peça da engrenagem internacional que trabalha para a Rússia e pretende colocar os segredos militares brasileiros nas mãos de Moscou”.
Durante uma semana, o jornal insistiu na história da infiltração comunista no Itamaraty, até que, em 18 de agosto, “O Globo” repercutiu. Coincidência ou não, ambos os jornais detestavam a poesia de João Cabral e aproveitaram para chamá-lo de “poeta hermético”.
Dessa vez deu certo. O Itamaraty abriu processo administrativo à revelia dos acusados, que só tomaram conhecimento do inquérito quando o governo publicou o ato de punição no “Diário Oficial”, colocando João Cabral em disponibilidade, por tempo indeterminado, sem vencimentos.
Além disso, Vargas mandou correr a denúncia contra o poeta no Conselho de Segurança Nacional. Ele foi enquadrado no artigo 2º, inciso 11, da Lei de Segurança Nacional então em vigência. A acusação: planejar desmembrar o território nacional por meio de movimento armado ou tumulto preparado.
João Cabral seria absolvido no Supremo Tribunal Federal em 1954 e reintegrado ao Itamaraty somente em 1955, por ato do novo presidente da República, Juscelino Kubistchek.
Preocupadíssimo com a reação de Carlos Lacerda, Juscelino reintegrou João Cabral sem fazer alarde. Mandou o poeta fazer uma pesquisa histórica em Sevilha (Espanha) e descobrir o que existia sobre o Brasil no Arquivo Geral das Índias.
A encomenda de JK renderia frutos: João Cabral escreveria o poema “Padres sem Paróquia”, sobre padres que chegavam bem cedo ao prédio do Arquivo Geral das Índias, ocupavam suas mesas e tagarelavam a manhã inteira até a hora do almoço, sem fazer absolutamente nada.
É também fruto dessa experiência um livro pouquíssimo conhecido, com jeito de guia de fontes de história, “O Arquivo das Índias e o Brasil”, publicado em 1966 pelo Ministério das Relações Exteriores.
A história, aliás, não era tema estranho aos Melo — o irmão Evandro se tornaria um prestigiado historiador — nem ao poeta. Trinta anos depois da viagem à Espanha, João Cabral escreveria “Auto do Frade”, longo poema em forma de teatro sobre o frei Caneca e a Confederação do Equador, ocorrida em 1824.
Em 1990, João Cabral receberia a mais importante distinção para literatura de língua portuguesa, o Prêmio Camões, e até morrer, em 1999, era frequentemente lembrado para concorrer ao Nobel de Literatura.