A estreia de “Rio, 40 Graus”, de Nélson Pereira dos Santos, em 1955 representou uma revolução no cinema brasileiro, por várias razões — uma delas, de natureza estética, já que foi realizado longe dos grandes estúdios, com baixo orçamento e atores não profissionais. O cenário das gravações era a cidade do Rio de Janeiro, visto pelo olhar de cinco crianças negras do morro do Cabuçu que vendiam amendoim nos principais pontos turísticos da cidade.
Outra revolução foi política: o enredo incorporou as discussões sobre o subdesenvolvimento, evidenciando, com um realismo até então inédito, o Brasil dividido pelas desigualdades sociais. A inspiração veio do neorrealismo italiano, com destaque para os diretores Vittorio de Sica (com “Ladrões de Bicicleta”, 1948) e Roberto Rossellini (“Roma, Cidade Aberta”, 1945, e “Alemanha, Ano Zero”, 1948), que revelaram, pelo olhar das crianças, as marcas deixadas nas cidades europeias pela Segunda Guerra Mundial.
Ao realizar “Rio, 40 Graus”, Nélson precisou enfrentar o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que alegava não ser hora de fazer cinema, e a censura, que suspeitava ter havido financiamento de Moscou. Esse impasse adiou mas não impediu o lançamento do filme, que foi recebido com entusiasmo pela crítica.
“Rio, 40 Graus” virou uma página na história do cinema brasileiro: a partir dele, cada vez mais, as margens do Brasil chegariam às telas.
“Rio, Zona Norte”, de Nélson Pereira dos Santos, é um tributo a dois importantes nomes da cultura brasileira: o sambista Zé Kéti e o ator Grande Otelo. Inspirado na vida do compositor (que é autor de boa parte da trilha sonora), o filme conta a história de Espírito da Luz Soares (Grande Otelo) a partir de fragmentos de sua memória, que nos transportam para a dura realidade de um sambista do morro que luta para ser reconhecido.
Depois de muitas frustrações, tendo suas letras rejeitadas ou, até mesmo, roubadas pelo malandro Maurício (Jece Valadão), Espírito da Luz ainda vê seu filho ser assassinado. Emocionado, ele compõe uma canção para ser cantada na rádio por Ângela Maria — uma das intérpretes mais importantes do samba-canção.
Assim como “Rio, 40 Graus”, o elenco desse filme é quase todo formado por atores negros, o que era incomum na época — e é até hoje. “Rio, Zona Norte” contribui para o debate sobre as desigualdades sociais e o racismo: Espírito da Luz não morreu apenas por ter caído na linha do trem, mas também porque o reconhecimento de seu talento lhe fora sempre negado por causa de suas origens.
Em meados dos anos 1950, o cinema brasileiro vivia um momento ambíguo, de crise e redescoberta. A “era dos estúdios” entrava em colapso, com a falência da Vera Cruz e o esgotamento criativo das chanchadas da Atlântida. Ao lançar “Rio, 40 Graus”, Nélson Pereira dos Santos lançou também uma alternativa para o cinema nacional: produções de baixo custo e socialmente comprometidas. Isso arrefeceu o entusiasmo dos distribuidores, que já não contavam com as grandes bilheterias das chanchadas, mas ao mesmo tempo injetou ânimo em toda uma nova geração de cineastas.
Nesse contexto, Nélson ocupou um papel central, não apenas como diretor, mas também como produtor, incentivando a realização de vários filmes experimentais — dos quais se destaca “O Grande Momento”, dirigido por Roberto Santos e lançado em 1958.
Esse filme, que pode ser caracterizado como comédia dramática influenciada diretamente pelo neorrealismo italiano, conta a história de Zeca (Gianfrancesco Guarnieri), jovem de classe média baixa que, às vésperas de seu casamento, dá-se conta de que não tem dinheiro para a festa e resolve vender sua bicicleta. O enredo, simples, tem como cenário o Brás, bairro operário de São Paulo colonizado por italianos, onde era preciso buscar o tempo todo alternativas para viver.
Para o cinema brasileiro, o caminho que se desenhava era parecido.
Quando o crítico, ensaísta e escritor Walter da Silveira criou em Salvador o Clube de Cinema da Bahia, em 1950, seu objetivo era alargar o horizonte cinematográfico da cidade. Naquele espaço cultural reuniam-se jornalistas, artistas, intelectuais, professores, estudantes e cinéfilos em geral. Além dos filmes nacionais, conheciam e debatiam o expressionismo alemão, a escola soviética e o neorrealismo italiano.
Dessa fecunda experiência cultural nasceu o chamado Ciclo Baiano de Cinema, que revelou importantes nomes da cinematografia nacional, como os diretores Roberto Pires e Glauber Rocha, e os atores Antônio Pitanga, Luíza Maranhão, Helena Ignês e Geraldo Del Rey.
Dos filmes produzidos na Bahia, “A Grande Feira” (1961), do diretor Roberto Pires, foi o que mais bem traduziu a efervescência cultural da cidade naqueles anos. O ponto de partida foi um acontecimento traumático: a luta dos feirantes de Água de Meninos diante da ameaça de despejo movida por uma grande imobiliária.
A paisagem de Salvador — tal como o Rio de Janeiro em “Rio, 40 Graus” — causa impacto, como na cena em que o “sueco” Ronny (Geraldo Del Rey) passeia de carro com Ely (Helena Ignês) por vários trechos turísticos da cidade. Mas Roberto Pires chamou a atenção para os dois lados da cidade: a riqueza da orla e dos bairros nobres e a pobreza do submundo de Salvador — pobres, prostitutas e ladrões, morando em barracos insalubres e sobrados decadentes.
O gênero policial era pouco explorado no cinema brasileiro antes de “Assalto ao Trem Pagador”, dirigido por Roberto Farias e lançado em 1962. Para aliar a trama de suspense a uma visão social crítica, Farias adaptou a história do famoso assalto ocorrido em meados de 1960 na ferrovia da Central do Brasil. A operação fora mesmo digna de cinema: o grupo de criminosos, oriundos do morro da Mangueira, organizou meticulosamente o ataque que lhes rendeu 27 milhões de cruzeiros — uma fortuna na época e um dos mais ousados crimes do Brasil até hoje.
Roberto Farias tomou o partido dos fora da lei, construindo uma narrativa que mostra como cada um deles usou o dinheiro. O protagonista é Tião Medonho (Eliezer Gomes), que no filme faz de tudo para melhorar a situação precária de sua comunidade, assumindo, por vezes, tarefas que seriam de responsabilidade do Estado. A situação social é apresentada de forma dramática — boa parte do filme se passa dentro das casas dos moradores empobrecidos e, ao mesmo tempo, deslumbrados com a possibilidade de enriquecer e sair daquela vida.
“Assalto ao Trem Pagador” foi sucesso de público e ainda hoje é lembrado como um dos mais bem-sucedidos filmes do gênero, além de oferecer uma porta de entrada para entender a criminalidade do país em seu viés sociológico.
Criado no Rio de Janeiro em 1961, o Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE tinha como principal objetivo difundir, entre as camadas populares, uma arte de caráter nacionalista e engajada socialmente. Os CPCs, que gravitavam o Partido Comunista Brasileiro (PCB), logo se espalharam pelo Brasil como uma das formas mais fecundas de mobilização estudantil no período anterior ao golpe de 1964.
Um dos departamentos dos CPCs era o de cinema, que reunia jovens diretores com sensibilidade social e compromisso político, como Marcos de Farias, Miguel Borges, Joaquim Pedro de Andrade, Carlos Diegues e Leon Hirszman, que se uniram em 1962 na produção de “Cinco Vezes Favela”.
De baixo orçamento, o filme circulou principalmente nos cineclubes estudantis. Seu objetivo era narrar, em cinco curtas-metragens produzidos pelos cinco diretores, aspectos dramáticos da realidade social das favelas. Em “O Favelado”, por exemplo, Marcos de Farias filma o cotidiano de um grupo de miseráveis que, ao recolher comida num depósito de lixo, são sobrevoados por urubus.
São cinco filmes esteticamente ousados e experimentais, influenciados pelas escolas cinematográficas europeias de vanguarda, como a do cineasta soviético Sergei Eisenstein sobre Leon Hirszman na montagem dos planos de “Pedreira de São Diogo”.