1978 - 1979

Uma grande vitória da Democracia

A luta pela anistia (1975 - 1979)

A campanha pela anistia ampla, geral e irrestrita, que teve seus momentos mais intensos em 1978 e 1979, foi um dos momentos mais significativos da luta pela democracia e contra a ditadura, fruto de uma frente política e social que mobilizou o conjunto dos movimentos sociais e dos setores da oposição. Por seu caráter humanitário e político, sensibilizou amplamente a população e teve repercussão internacional. Mesmo sem ter alcançado totalmente seus objetivos, a votação da Lei da Anistia, em agosto de 1979, representou uma grande vitória das forças democráticas sobre o regime.

A luta pelo perdão começou tão logo os militares anunciaram as primeiras perseguições aos adversários do golpe – uma lista com uma centena de cidadãos que tinham os direitos políticos cassados por 10 anos, a partir de 9 de abril de 1964. Outras listas de cassações se seguiriam, além de prisões, com ou sem processo, e demissões arbitrárias de servidores civis e militares. Poucos meses depois do golpe, os jornalistas Alceu de Amoroso Lima e Carlos Heitor Cony escreveriam artigos a favor da anistia, uma tradição política que vinha dos tempos do Brasil colonial.

Em 1967, a Frente Ampla – movimento criado pelos ex-presidentes João Goulart e Juscelino Kubitscheck e pelo ex-governador Carlos Lacerda, todos cassados –  defendeu uma “anistia geral” como passo necessário à redemocratização do país. Também os familiares de presos políticos levantaram desde cedo essa bandeira. Em 1968 foi criada a União Brasileira de Mães, posta na ilegalidade em 1969. Em junho de 1971, o grupo dos autênticos do MDB – parlamentares mais combativos na luta contra a ditadura – havia incluído a defesa da anistia aos perseguidos políticos na “Carta de Recife”, aprovada pelo partido.

Num período em que os jornais estavam sob censura (quando não colaboravam ativamente com o regime e a repressão), as denúncias de violação dos direitos humanos pela ditadura tinham mais repercussão no exterior do que dentro do país. Para isso contribuiu a articulação de grupos de exilados, que publicavam boletins e jornais em outros países, e ação corajosa de líderes da igreja católica, dentre os quais se destacou o arcebispo de Olinda e Recife, dom Helder Câmara. Em maio de 1970, ele denunciou a prática de torturas no Brasil para uma plateia de 10 mil pessoas.

A ditadura tratava essas denúncias como “campanha para denegrir a imagem do Brasil no exterior”. A simples menção ao nome de dom Helder foi proibida nos jornais brasileiros. Mas a causa da anistia e da investigação do “desaparecimento” de presos políticos avançava, na medida em que  tortura e assassinato se tornavam instrumentos oficiais da repressão política.

Em setembro de 1973, no famoso discurso de lançamento como anticandidato à Presidência da República, o líder oposicionista Ulysses Guimarães defendeu o “resgate da enorme injustiça que vitimou, sem defesa, tantos brasileiros paladinos do bem público e da causa democrática”. “Essa Justiça”, afirmou o presidente do MDB, “é pacto de honra de nosso partido e seu nome é anistia”. No Natal de 1974, dom Paulo Evaristo Arns reuniu militantes de diferentes linhas políticas e sugeriu a organização de uma campanha em defesa da anistia.

1978 - 1979

O Movimento Feminino

Anistia

Foi em 1975 que de fato iniciou-se uma campanha organizada pela anistia, com o surgimento em março do Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), na cidade de São Paulo, sob a liderança de Therezinha Zerbini, esposa do general cassado Euryales Zerbini. O movimento ganhou repercussão internacional quando Therezinha participou da 1ª Conferência Mundial sobre a Mulher, promovida pela ONU na Cidade do México como parte das comemorações do Ano Internacional da Mulher. 

Na conferência da ONU foi divulgado o Manifesto da Mulher Brasileira, que reivindicava “anistia ampla e geral a todos aqueles que foram atingidos pelos atos de exceção”. No Brasil, o manifesto do MFPA recebeu 16 mil assinaturas, recolhidas por comitês estaduais, o mais importante deles no Rio Grande do Sul. Em dezembro de 1976, militantes gaúchas do MFPA lançaram uma bandeira com a palavra "anistia" sobre o caixão do ex-presidente João Goulart durante seu sepultamento em São Borja.

A denúncia das torturas e “desaparecimentos", sempre associada à bandeira da anistia, chegou à televisão brasileira em junho de 1977, durante um programa em rede nacional do MDB, que foi ao ar graças a uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral. Em sua fala, o líder do partido na Câmara, Alencar Furtado (PR), criou uma das mais tocantes imagens sobre o drama das famílias de presos políticos:

“O programa do MDB defende a inviolabilidade dos direitos da pessoa humana para que não haja lares em prantos; filhos órfãos de pais vivos – quem sabe? – mortos, talvez. Órfãos do talvez ou do quem sabe. Para que não haja esposas que enviúvem com maridos vivos, talvez; ou mortos, quem sabe? Viúvas do quem sabe ou do talvez”.

Alencar Furtado teve o mandato e os direitos políticos cassados pelo general presidente Ernesto Geisel no dia seguinte ao programa, mas a causa da anistia não podia mais ser abafada pela imprensa nem ignorada pelo regime. Entidades civis como a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) abraçaram a causa, que já era levada às ruas na retomada das passeatas estudantis. A bandeira entrou também na pauta do movimento sindical, que se reorganizava em torno de lideranças combativas.

1978 - 1979

Os Comitês Brasileiros pela Anistia

Anistia

A partir de 1978 começaram a se organizar no país Comitês Brasileiros pela Anistia em vários Estados, reunindo militantes políticos e sociais, além de familiares de presos políticos e exilados. Estas organizações, que também se formavam no exterior, articularam-se para impulsionar o movimento. Entre os fundadores do CBA, estava o general Peri Bevilacqua, ex-ministro do Superior Tribunal Militar, cassado em 1969 pelo AI-5, que se notabilizou por denunciar as arbitrariedades do aparelho de repressão. 

O 1º Congresso Nacional pela Anistia, realizado em novembro de 1978, em São Paulo, deixou clara a proposta defendida pelo movimento. A anistia deveria ser ampla, geral e irrestrita; não poderia ser confundida com perdão ou esquecimento dos crimes praticados pela ditadura; e buscaria o esclarecimento desses crimes, com a responsabilização dos culpados. Ao mesmo tempo, deveriam ser reintegradas às suas funções as pessoas que haviam sido afastadas arbitrariamente de seus cargos. 

Em fevereiro de 1979, num jogo entre Santos e Corinthians, a torcida corintiana abriu uma faixa exigindo anistia. Na revista "IstoÉ", de grande influência na época, o cartunista Henfil publicava semanalmente as "Cartas da Mãe", nas quais falava sobre o irmão Herbert de Souza, o Betinho, dirigente de esquerda exilado no Canadá. O senador Teotônio Vilela, do MDB de Alagoas, percorria o país visitando presos e organizando atos públicos. Madre Cristina, diretora do Instituto Sedes Sapientiae, e a atriz Ruth Escobar, entre outras tantas mulheres, estavam na primeira linha da campanha.

Também em 1979, Elis Regina, a maior cantora da Música Popular Brasileira na época, gravou com grande sucesso “O Bêbado e a Equilibrista”, bela canção de João Bosco e Aldir Blanc que se tornou um verdadeiro hino da anistia. O samba em ritmo lento fala de um país que “sonha com a volta o irmão do Henfil” e onde “choram Marias e Clarices”, aludindo a Maria Figueiredo, mãe de Henfil e Betinho, e a Clarice Herzog, viúva do jornalista Vladimir Herzog, assassinado no DOI-Codi de São Paulo em 1975.

1978 - 1979

A Lei

Anistia

Em março de 1979, o general presidente João Baptista Figueiredo iniciou o último governo da ditadura militar. Herdou o projeto de “abertura” iniciado pelo antecessor, general Ernesto Geisel, que propunha uma transição política do país sob o controle dos militares e das elites que eles representavam. Quinze anos depois do golpe de 1964, o Brasil vivia uma grave crise econômica e social, e a ditadura chegava ao esgotamento.

Em  27 de junho, acuado por uma onda de greves operárias e protestos estudantis por liberdades democráticas, Figueiredo encaminhou ao Congresso um projeto de anistia parcial, que excluía os presos condenados por ações armadas contra o regime.

Além de ser considerado limitado e mesquinho pela oposição e pelas entidades democráticas, o projeto de Figueiredo embutia, de forma sorrateira, o perdão judicial para os torturadores e assassinos que atuaram no aparelho estatal de repressão. A chave desta “auto-anistia” estava no artigo que mencionava os autores de “crimes conexos”, que seriam as prisões arbitrárias, torturas e “desaparecimento” de presos. A manobra foi percebida e repudiada, mas o foco da luta naquele momento passou a ser a ampliação da anistia, para torná-la “geral e irrestrita”.

Em 22 de julho, os 14 presos políticos da Penitenciária Frei Caneca, no Rio, entraram em greve de fome pela ampliação da medida. A greve logo recebeu a adesão dos presos de Barro Branco (SP), Recife, Fortaleza, Salvador e Natal. Durante 32 dias, até a votação do projeto pelo Congresso, 37 presos políticos mantiveram o protesto. Em 14 de agosto, uma passeata pela anistia ampla, geral e irrestrita levou mais 20 mil pessoas ao centro do Rio. No dia 21, véspera da votação, houve manifestações em todo o país, quase sempre reprimidas com violência pela polícia.

A justiça da causa e a amplitude do movimento dividiram o partido oficial da ditadura, a Arena, que tinha maioria no Congresso. Quinze deputados da Arena votaram com o MDB a favor de um projeto substitutivo do deputado Djalma Marinho (Arena-RN), que estendia a anistia a todos os presos e condenados por atos de exceção. Com algumas modificações, que incluíam a anistia aos sindicalistas cassados, o projeto do general Figueiredo acabou aprovado, mas por uma diferença de apenas 5 votos: 206 x 201. 

A sessão no Congresso durou nove horas, com as galerias repletas de militantes dos movimentos pela anistia e familiares de presos, exilados e desaparecidos. Portavam cartazes e aplaudiam intensamente os votos dos dissidentes da Arena. O deputado Erasmo Dias (Arena-SP), ex-secretário de Segurança que comandara a invasão da PUC e a repressão às passeatas estudantis em São Paulo, foi chamado de “assassino” ao votar contra a ampliação, num coro que durou cerca de um minuto. 

Os presos políticos condenados por “crimes de sangue” não foram anistiados imediatamente. Permaneceram nos cárceres e somente foram libertados nos meses seguintes depois de que a Justiça Militar passou a interpretar de forma flexível a nova lei. Muitos familiares de mortos e desaparecidos não puderam sequer obter o atestado de óbito de seus parentes, pois a lei estabeleceu que somente poderia ser emitido um “atestado de paradeiro ignorado” ou de “morte presumida”.

Mesmo com suas limitações e contradições, a Lei da Anistia representou, naquele momento, uma grande vitória das forças democráticas sobre a ditadura. Ela permitiu o retorno ao país de centenas de ex-presos políticos, de exilados e clandestinos, e fez justiça a milhares de pessoas que haviam tido seus direitos políticos cassados e perdido seus empregos. Entre os líderes que retornaram ao país estavam Luís Carlos Prestes, Leonel Brizola, Miguel Arraes e Francisco Julião, recebidos com grandes atos públicos.

Hoje é importante ressaltar que a Lei de Anistia não representou, de modo algum, um “grande acordo nacional”, como setores que foram ligados à ditadura querem fazer crer. Se por um lado a lei fez justiça a grande parte dos que lutaram contra o arbítrio, por outro os militares anistiaram a si mesmos e a todos os que atuaram ao seu lado na repressão. Ao proteger os torturadores e seus comandantes, a Lei da Anistia abriu espaço para a perpetuação da impunidade e da injustiça.