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Resistência cultural Música

A canção popular sempre teve papel de destaque na cultura brasileira – é uma forma de expressão dos brasileiros, uma maneira de entender o país e um dos meios através dos quais o Brasil conhece a si próprio. Está implícito ou explícito no nosso cancioneiro um padrão de reflexão que vem contribuindo, ao longo do tempo, para a compreensão da nossa sociedade, seus dilemas, problemas e possibilidades. E o contrário também funciona: certas coisas do Brasil só se deixam entender pela canção.

Durante a ditadura não foi diferente. O compositor popular esteve, em grande parte, comprometido com as manifestações de oposição ao governo dos militares. As diferentes modalidades da canção – samba, MPB, rock, brega, sertaneja – compartilharam idêntica vocação: burlar a censura, perturbar o poder, contestar a narrativa oficial produzida pelo regime. A correlação de forças era adversa e o inimigo muito forte. Além disso, o uso brutal da violência contra os adversários da ditadura era a regra. Mas as canções seguiram sendo um dos modos decisivos de informação, resistência e politização da cena pública nacional.

Resistência cultural / Música Canções De Protesto

A “canção de protesto” foi a primeira tentativa do compositor popular de se mobilizar de maneira sistemática contra a ditadura. Deixando de lado a sofisticação cosmopolita da bossa nova, a canção de protesto fazia denúncias e chamava à resistência política. A disposição em estar ao lado do povo e, por vezes, em fazer-se povo para compartilhar de sua vida e de sua miséria, aparece expressamente em canções com características estéticas e musicais muito distintas: “Carcará” com Maria Bethânia, “Disparada”, de Vandré e Théo de Barros, “Terra de ninguém”, dos irmãos Vale, “Favela”, de Padeirinho e Jorginho, “Procissão”, de Gilberto Gil, “Maria do Maranhão” de Carlos Lyra e Nélson Lins de Barros, “Comedor de Gilete”, também de Carlos Lyra em parceria com Vinícius de Moraes, “A estrada e o violeiro” de Sidney Miller.

Carcará
Comedor de Gilete
Disparada
Estrada e o violeiro
Favela
Maria do Maranhão
Procissão
Terra de ninguém

Resistência cultural / Música Caminhando E Cantando

Nossa canção exemplar de exortação revolucionária – “Pra não dizer que não falei das flores”, que ficou mais conhecida como “Caminhando e cantando” – foi apresentada pelo autor, Geraldo Vandré, durante a eliminatória paulista do III Festival Internacional da Canção, em 1968. Tinha dois acordes, que embalavam versos de fortíssimo apelo contestador. Tudo na canção provocava polêmica, a começar pela definição do gênero: Vandré estava convencido de que havia composto uma espécie de “rasqueado de beira de praia”, uma modalidade musical que surgiu como diversão de negros e mulatos, em Lisboa, durante a primeira década do século XIX, cuja sonoridade é obtida por meio da raspadura da unha rápida e sucessivamente pelas cordas do violão ou da guitarra, sem as dedilhar. Já o maestro Gaya, durante o Festival, acreditava piamente estar regendo uma guarânia. Juízo estabelecido sobre a canção só o dos militares: “Prá não dizer que não falei de flores”, explicou didático, à imprensa, o general Luís de França Oliveira, secretário de segurança do Rio de Janeiro, no momento em que a canção foi censurada em todo o território nacional, “tinha letra subversiva e sua cadência é do tipo de Mao-Tsé-Tung”. Vandré, depois do AI-5, teve de se exilar no Chile.

ouça um um trecho da música

Resistência cultural / Música “sabiá” Paga O Pato

No estádio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, em setembro de 1968, um público estimado em 30 mil pessoas cantou em uníssono “Prá não dizer que não falei de flores” e muitos vaiaram com indignação e fúria “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque. No estádio repleto de estudantes, o público protestava contra o segundo lugar dado pelo júri do Festival a Vandré e a vitória de “Sabiá”. Seria preciso ainda alguns anos para que se compreendesse “Sabiá” como uma canção sobre o lugar do desterro e se percebesse que a canção era percorrida por um sentimento de perda, ao mesmo tempo existencial e político. A referência ao sabiá-laranjeira, pássaro comum do sudeste do Brasil, era, é claro, inspiração de Jobim, mas a inversão da estrutura conceitual da estrofe final da “Canção do exílio”, poema de Gonçalves Dias, foi trabalho de Chico Buarque.

A maior vaia já ouvida nos grandes festivais foi um duro baque para Tom Jobim – confessando ter chorado frente a reação da platéia. Após vencer a fase nacional do III FIC, Sabiá deveria passar por nova provação na etapa internacional; Jobim então suplica a presença de Chico, que estava na Itália, para ajudá-lo a defender-se do público em uma outra eventual vaia. (veja ao lado o telegrama de Jobim a Chico]

Sabiá

Resistência cultural / Música A Era Dos Festivais

A partir de 1965, os Festivais da Canção foram, ao mesmo tempo, um momento extraordinário de explosão artística, um marco divisório na canção popular brasileira – em torno dos festivais giravam todas as vertentes do nosso cancioneiro – e alvo da repressão política. Em 1971, vários compositores liderados por Gutemberg Guarabira, decidiram usar o festival como forma de protesto: inscreveram canções e não entregaram as letras. O plano era aguardar até o último momento do encerramento das inscrições e só então entregar as letras de uma vez – todas contra a ditadura. A censura, porém, conseguiu brecar o movimento e, em protesto, 12 compositores redigiram uma carta aberta à população e retiraram suas canções do Festival: Paulinho da Viola, Edu Lobo, Egberto Gismonti, Vinicius de Moraes, Toquinho, Chico Buarque, Ruy Guerra, Capinan, Sérgio Ricardo, Tom Jobim, Marcos e Paulo Sérgio Valle. Os militares não tiveram dúvida: todos os artistas foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional.

Ao lado, carta assinada por vários compositores justificando o boicote ao Festival Internacional da canção de 1971. O protesto foi articulado pelo diretor artístico Gutemberg Guarabyra. O abaixo-assinado foi endereçado ao Pasquim que o repassou as outras redações. Os militares se movimentaram rapidamente e apenas o jornal Última Hora divulgou o documento. Data: 1971. Acervo Gutemberg Guarabyra

Resistência cultural / Música Nara Passarinho, Eles Passarão

Nara Leão foi uma das mais importantes cantoras brasileiras de todos os tempos e uma ativista política impecável. Deu voz de protesto às canções contra a ditadura, retirou do esquecimento grandes sambistas brasileiros – Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Keti – e combateu com valentia a censura – dentro e fora dos palcos. Em maio de 1966, reafirmou o repertório engajado de seus LPs clássicos – “O canto livre de Nara” (1965]; “Nara pede passagem” (1966]; “Manhã de Liberdade” (1967] – em uma entrevista explosiva ao jornal carioca “Diário de Notícias”. Título da entrevista: “Nara é de opinião: esse Exército não vale nada”. Foi um Deus nos acuda: os militares exigiram a prisão imediata de Nara. Intelectuais, escritores e artistas – como Antônio Callado, Ênio Silveira, Hélio Peregrino, Tônia Carreiro, Odete Lara, Suzana de Moraes, Fernanda Montenegro, Millôr Fernandes, Stanislaw Ponte Preta, Edu Lobo, Mário Lago, Rubem Braga – saíram com estardalhaço em sua defesa. O poeta Carlos Drummond de Andrade se dirigiu ao general Castelo Branco, então presidente da República, através de um poema publicado no “Correio da Manhã” que terminava entre o aviso e o apelo: “Nara é pássaro, sabia?/e nem adianta prisão/para a voz que, pelos ares/espalha sua canção/Meu ilustre general/dirigente da nação/não deixe, nem de brinquedo/que prendam Nara Leão”. Recordando o episódio, é impossível não se lembrar hoje dos versos de Mário Quintana: “Eles passarão.../Eu passarinho!”.

Capas de disco
Capa do disco “O canto livre de Nara” lançado em 1965 pela gravadora Philips.

Capa do disco “Nara pede Passagem” lançado por Nara Leão em 1966 pela gravadora Philips.

Capa do disco “Manhã de liberdade” lançado por Nara Leão em 1966 pela gravadora Philips.
Entrevista
Em entrevista, Nara Leão defendeu abertamente que o lugar das Forças Armadas definitivamente não era no Governo do Brasil. Aliás, Nara foi além: pode-se depreender que, para ela, em nenhum lugar do mundo a autoridade deveria emanar daqueles que compreendem mais de armas do que a política.
Poema de Drummond
Drummond escreveu seu poema Apelo com versos que, velados sob uma pretensa submissão às Forças Armadas, defendiam Nara Leão e provocavam os militares, questionando-lhes que mal havia nas opiniões pacifistas e democráticas daquela singular cantora.

Resistência cultural / Música A Liberdade Que Vem De Fora

Freedom song eram as canções de liberdade, largamente cantadas nos Estados Unidos durante a Campanha pelos Direitos Civis e as grandes manifestações pela igualdade de negros e brancos. Já na América Latina, em especial na Argentina, no Chile e no Uruguai, a cena musical da década de 1960 foi tomada por um tipo de canção engajada que combinava folclore rural com poética lírica, mensagens políticas fortes, performance despojada e uso de instrumentos acústicos. No Brasil, essas canções fizeram sucesso no inicio da década de 1970, na voz de intérpretes como a cantora norte-americana Joan Baez e argentina Mercedes Sosa; dos compositores chilenos Victor Jara e Violeta Parra; ou de conjuntos musicais – o chileno Quilapayún e o brasileiro Tarancon.

El pueblo unido jamas sera vencido
Gracias a la vida
If You Miss Me at the Back of the Bus
Plegaria a un labrador - trocar vitor rara
Te recuerdo amanda
Qé dirá el Santo Padre
La democracia

Resistência cultural / Música Tropicália

Em 1968, surgiu a “Tropicália”, um movimento musical que reunia compositores como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Torquato Neto, Capinam, Rogério Duprat e a revolucionária banda de rock “Os Mutantes”, transbordando para outros campos da cultura – no teatro, nas artes visuais, no cinema. A Tropicália misturava a tradição da canção popular com o pop internacional e as experimentações de vanguarda. Evocava as imagens estereotipadas do Brasil como um paraíso tropical e realizava a crítica aguda do país com referências incisivas à repressão política, à desigualdade e à miséria social.

Divino Maravilhoso
Enquanto seu lobo não vem
Exílio
Mutantes

Resistência cultural / Música Clube Da Esquina

Um pouco do que a Tropicália viria a incorporar em suas canções – como o rock, em especial The Beatles – também serviu para dar forma a outro movimento musical, o “Clube da esquina”. O movimento costuma ser lembrado pela figura de Milton Nascimento – seu elemento catalisador – e pela criação de uma cena sonora nova e bastante sofisticada que trouxe para a canção os temas do desaparecimento forçado, da morte dos amigos, da supressão da liberdade. Na década de 1970, as esquinas de Belo Horizonte proporcionavam os mais diversos tipos de encontros. A partir desse espaço público por excelência, o Clube da Esquina lançou também um outro olhar sobre o Brasil. Em suas canções, a cidade voltava a ser imaginada como um espaço essencial para a política, devido às suas possibilidades de diálogo; à pluralidade de ideias e, principalmente, ao fortalecimento da amizade. Essa, por sua vez, era cantada pelo Clube da Esquina não como a um fenômeno próprio da intimidade. Ao contrário, o espírito associativo que fundamenta a relação entre amigos, com interesses voltados para a resistência contra o arbítrio, seria a base para reinvenção da política e a busca pela liberdade.

Fé cega, faca amolada
Menino
Nada Será Como antes

Resistência cultural / Música Marighella!!

Em 1969, Gilberto Gil compôs “Alfômega”, uma tentativa de exercitar na canção os procedimentos concretistas de ligar palavras e inventar neologismos compostos. A gravação de Caetano Veloso, realizada em junho do mesmo ano, combinava política com experimentalismo estético e incluía ao fundo a voz crua de Gil gritando o nome proibidíssimo de Marighella, o mitológico dirigente revolucionário da luta armada no país que seria assassinado à queima roupa, em novembro de 1969, numa emboscada preparada pelas forças de repressão na cidade de São Paulo. O grito de Gil era um gesto de resistência: introduzia a guerrilha urbana como uma verdade factual capaz de contestar a coerência da narrativa de ordem e de pacificação oferecida pelas autoridades do governo.

Alfômega
Vídeo Marighella
Veja um trecho do filme

Resistência cultural / Música Driblando A Censura

Entre 1964 e 1985, um conjunto de canções se empenhou em devassar o mundo do segredo, do censurado, do impublicável para contestar a versão oficial colocada em curso pelo regime. Em “Tocaia”, por exemplo, composta em 1973, Sérgio Ricardo narrou o assassinato de outro importante dirigente da luta armada, o capitão Carlos Lamarca, no sertão baiano, após implacável perseguição dos órgãos de segurança. Já no ano seguinte, quando o MPB-4 gravou “Tá certo, doutor”, de autoria de Gonzaguinha, o alvo da canção era outro: o governo do general Geisel havia proibido qualquer notícia na imprensa sobre a epidemia de meningite que começou na periferia de São Paulo, chegou até o Rio de Janeiro e matou, no seu auge, cerca de 2.800 pessoas, crianças na sua esmagadora maioria. Foi essa notícia que o MPB-4 tratou de fazer circular amplamente pelo país, em uma interpretação antológica da composição de Gonzaguinha, gravada no disco “Palhaços e reis”, e que começa exatamente com o aviso: “cuidado aí, gente, olha o menino com meningite aí, gente!”

Enquanto o governo tratava de negar que havia um surto da doença no Brasil, a grande imprensa oscilava entre denúncia e “vista grossa” do caso. Porém, o estrago que a enfermidade causava no pais, sendo ou não noticiada, era sentida por milhares de brasileiros, crianças pobres em sua grande maioria.

Tá certo doutor

Resistência cultural / Música Sinal Fechado

Os primeiros anos da década de 1970 trouxeram como uma das características do combate político contra a ditadura protagonizado pela canção popular, os elementos da linguagem musical do rock, uma ambiência noir e os motivos do medo, da viagem sem volta e da derrota – pessoal e política. A primeira metade da década de 1970 representou o período mais violento e repressivo da ditadura militar instalada no país com o golpe de 1964 e converteu a lírica do povo combatente e o sonho das utopias revolucionárias em desencantamento, desesperança e pesadelo: “Filme de terror”, de Sérgio Sampaio, “Para nóia”, de Raul Seixas e Paulo Coelho, “Balada do louco” e “Caminhante noturno”, composições de Arnaldo Batista e Rita Lee, “O sonho acabou”, de Gilberto Gil, “San Vicente”, de Milton Nascimento e Fernando Brant e, claro, “Vapor barato”, de Jards Macalé e Waly Salomão e “Eu quero é botar meu bloco na rua”, de Sérgio Sampaio – as duas canções-símbolo da sensação de asfixia e de falta de perspectivas.

Para nóia
O sonho acabou
Balada do Louco
Caminhante Noturno
Filme de terror
Sinal fechado

Resistência cultural / Música Censura Pra Todo Lado

Os anos 1970 deixaram claro que o engajamento do compositor no combate à ditadura não fazia distinção de gênero e incluía todas as modalidades do cancioneiro nacional. Incluindo uma vertente da canção romântica – a canção brega ou cafona. “Uma vida só (Pare de tomar a pílula]”, sucesso fulminante de Odair José, em 1973, bateu de frente com a campanha de controle da natalidade patrocinada pela ditadura. Coordenada pela Sociedade Civil de Bem-Estar Familiar no Brasil (Bemfam], a campanha recebia verbas internacionais e do governo militar, promovia farta distribuição de pílulas e dispositivos intra-uterinos (DIU] entre mulheres de baixa renda das regiões Norte e Nordeste do país e utilizava o slogan “tome a pílula com muito amor”. Não deu outra: a canção mais tocada nas rádios brasileiras durante o ano de 1973 teve sua execução pública proibida em todos os meios de comunicação, serviços de alto-falantes e casas de espetáculo do país, o disco foi retirado abruptamente de circulação e o compositor, orientado pelos executivos da gravadora Phonogram, partiu para uma temporada forçada – que durou um ano – na Inglaterra. Já o cantor romântico Fernando Mendes teve problemas com sua canção “Meu pequeno amigo”, que chorava o desaparecimento de um garoto chamado Carlinhos, sequestrado no Rio de Janeiro. As autoridades proibiram as rádios de tocar a música alegando que ela poderia ser entendida como uma cobrança de notícias dos desaparecidos políticos.

Pare de Tomar a Pílula
Meu pequeno amigo

Resistência cultural / Música Nossos Mártires, Nossos Heróis

Edson Luis de Lima Souto, Zuzu Angel, Vladimir Herzog, Marighella, Carlos Lamarca, Ernesto Che Guevara, João Goulart, guerrilheiros do Araguaia. Durante a ditadura várias foram as canções criadas para lembrar a morte ou o desaparecimento daqueles que doaram suas vidas na luta pela liberdade. Essas canções contribuíam para sustentar a causa dos ausentes e reverenciar suas memórias. O louvor ao companheiro morto, realizado através de palavras, versos, acordes e notas musicais, certamente não vencia a morte, mas transformava em a ação política a recordação dos que partiram.

Angélica
Prece
Tocaia

Resistência cultural / Música Chame O Ladrão!

Foi na canção “Acorda, amor”, composta em 1974, que Chico Buarque sumariou os abusos de poder cometidos por governantes arbitrários. A canção vinha assinada por Julinho da Adelaide e seu meio irmão Leonel Paiva, sustentava um arranjo impressionista onde sobressaia o som de sirenes de rádio-patrulha e trazia um refrão que escancarava a profunda inversão do sinal que legitima a segurança do cidadão na democracia – ao invés de “chame a polícia”, alertava o compositor, na ditadura, “chame o ladrão”. Chico sabia bem do que estava falando. Agentes do Estado retiravam uma pessoa indefesa de sua casa, levavam-na para centros de detenção desconhecidos, interrogavam-na. Frequentemente durante o interrogatório essa mesma pessoa também seria submetida a alguma forma de tortura. A margem de manobra das vítimas era mínima, o risco de acordar do pesadelo recorrente e cair noutro pesadelo dentro de uma cela de prisão era real. Às vítimas sobrava perplexidade, a sensação de pânico e a tentativa meio patética de se agarrar dignamente aos aspectos mais banais do cotidiano para não se aviltar no medo. Aos familiares, restava a tensão da dor, amplificada pela ausência da resposta: nenhum deles conhecia o que, de fato, havia acontecido com seus entes queridos.

Acorda amor
Julinho da Adelaide
Para driblar a censura, Chico Buarque inventou o heteronimo Julinho da Adelaide. O truque deu certo e a canção, além de “Jorge Brasileiro”, foi liberada. Julinho da Adelaide concedeu , inclusive, entrevista ao jornal Última Hora.

Resistência cultural / Música Discoteca

A discoteca nasceu do movimento de luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. Musicalmente é filha dos vários estilos de musica black dançante, em especial do funk de James Brown e da soul music de Aretha Franklin e Marvin Gaye. Politicamente suas raízes estão nas lutas pelos direitos dos gays, após o confronto de Stonewall, um bar gay em Nova York onde os homossexuais decidiram resistir à repressão policial que ocorria no local, em 1969 – o confronto durou vários dias e se transformou em um marco do movimento gay nos Estados Unidos. No Brasil, embora tenha sido comercialmente assimilada e se transformado em trilha sonora de festas de celebridades, seu ingresso no país coincidiu com as novas formas de militância política: o Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNUCDR], o Centro da Mulher Brasileira (CMB] e o Somos: Grupo de Afirmação Homossexual.

Um mês após os confrontos no Stonewall, um grupo de aproximadamente 200 pessoas saiu às ruas de Nova Iorque, exigindo direitos iguais aos homossexuais. A manifestação se transformou na primeira passeata de orgulho gay, no dia 27 de julho de 1969.

Resistência cultural / Música Não Vão Nos Calar

Em 1974, Maria Bethânia estreou o show “A cena muda”, no teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro. Foi um dos mais belos espetáculos de resistência à ditadura, repleto de canções com letras recitativas e cheias de metáforas políticas. Nesse espetáculo, Bethânia anunciava que não recitaria textos, pois era uma época em que não se podia falar. A censura não deixou barato, infernizou a vida da cantora e proibia, dia sim, no outro também, trechos inteiros na tentativa de inviabilizar o show. Teimosa, Bethânia refazia, no mesmo ritmo, segmentos inteiros do espetáculo sem perder seu fio condutor. Quando terminou a temporada, não teve dúvida: lançou o disco com registro ao vivo do show numa gravação primorosa para os padrões da época.

Eu fui à Europa

Resistência cultural / Música Canção Sertaneja

A partir de 1964, um conjunto significativo das canções sertanejas compartilhou com os ouvintes o entusiasmo de seus compositores e intérpretes, com as políticas agrárias executadas ao longo dos diferentes governos militares. Outras tantas, ao contrário, narraram a inadaptação dos muitos trabalhadores rurais às novas formas de produção agrícola incentivadas por essas políticas. A jornada dos bóias-frias, trabalhadores sem vínculo empregatício que viviam de diárias, negociadas a cada dia, foi cantada, em 1980, por Biá e seus batutas. O confronto entre as promessas dos agentes de colonização e a dureza cotidiana experimentada pelos colonos saídos do Sul, no Norte e Centro-Oeste do país, não escapou a dupla Cacique e Pajé, na canção A menina e a sucuri (1977]. Num período em que avançar sobre terras habitadas por nações indígenas era considerado “ocupar vazios”, essa mesa dupla gravou Deixe o índio em paz (1979]. Mas, coube a Renato Teixeira durante o período de redemocratização, em canções como Peão (1988], Rapaz Caipira (1985] e Boiada (1989], expor esse Brasil Rural transformado pelo avanço das técnicas agrícolas, das estradas, do caminhão e da proliferação de núcleos urbanos. Suas canções souberam expor a resistência de antigos habitantes do campo que teimavam em permanecer nesse país onde suas vivências pareciam não mais caber. Mas coube a Renato Teixeira durante o período de redemocratização, em canções como “Peão” (1988], “Rapaz Caipira” (1985] e “Boiada” (1989], expor esse Brasil rural transformado pelo avanço das técnicas agrícolas, das estradas, do caminhão e da proliferação de núcleos urbanos. Suas canções souberam expor a resistência de antigos habitantes do campo que teimavam em permanecer nesse país onde suas vivências pareciam não mais caber.

A menina e a sucuri
Bóia fria
Peão

Resistência cultural / Música Lira Paulistana

Em São Paulo, num local subterrâneo, descendo as escadas de um edifício da rua Teodoro Sampaio, o Teatro Lira Paulistana. Foi um lugar de encontros, agitação cultural e de resistência políticas onde ideais foram discutidos e jovens apresentavam suas obras, muitas delas cunhadas pelo tom de contravenção e subversão da ordem estabelecida. Entre 1979 e 1986, o Lira Paulista serviu de palco para uma geração que apostava na ironia e no bom humor para resistir à repressão de uma ditadura ainda teimava em continuar no poder. A oposição ao regime que emergia no pequeno ambiente ganhou força e ultrapassou o galpão underground, em eventos em praças e avenidas da cidade, sempre cantando a liberdade. Entre os nomes que fizeram parte do Lira Paulistana figuram nomes como Premeditando o Breque, Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Grupo Rumo e Língua de trapo, que se destacaram pela crítica ácida direcionada tanto à ditadura quanto a uma parcela da esquerda ultrapassada que não se adaptava à nova realidade política do país.

Deve ser bom
Documentário

Resistência cultural / Música Phono 73

Chico Buarque e Gilberto Gil fizeram uma apresentação conjunta no Phono 73, um espetáculo produzido pela gravadora para promover os artistas com os quais possuía contrato, contando também com Raul Seixas, Elis Regina, Vinícius de Morais e Toquinho, Caetano Veloso, Gal Costa e Maria Bethânia. O que era para ser um festival de exaltação da companhia fonográfica e de seus músicos de sucesso foi na verdade um palco de resistência. Chico e Gil foram incumbidos de escreverem uma canção para a ocasião, e desta proposta nasceu Cálice. A letra foi censurada às vésperas da apresentação; mas apesar da proibição, a dupla executou a nova composição, em um ato de desobediência civil. O resultado da subversão foi imediato: os microfones do palco foram desligados durante a apresentação e os compositores de Cálice, silenciados.

Cálice

Resistência cultural / Música Presidente Sem Pescoço

Chico Buarque, em seus tempos de aluno da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, frequentava o grêmio escolar para, entre uma batucada e outra, fazer política com a canção. Um de seus sambas no escuro, daqueles cativantes à primeira ouvida, tinha como alvo o presidente da República, o general Castelo Branco: troçando do militar com um refrão hilário – que fazia referência a seu tipo físico atarracado – o samba era entoado por Chico Buarque e seus colegas, em um coro carregado de repulsa àquele contexto político. Assim, de maneira simples e direta, dizia a canção “todo povo tem um osso/ o nosso é um presidente sem pescoço”.

Chico Buarque

Resistência cultural / Música Luta Por Direitos

Gays
A luta dos homossexuais por seus direitos é, ao mesmo tempo, uma defesa do amor. Porém, a moral conservadora, defendida e empregada pela ditadura militar compreendia a relação homoafetiva como uma subversão dos sempre-ditos bons-costumes. A banda pernambucana Ave Sangria e os paulistas do Premeditando o Breque mantiveram a tradição de resistência teimosa à ditadura militar, inserindo a temática homossexual nas canções Seu Waldir e Rubens. Já nos fins da década de 1970, em meio à efervescência dos movimentos sociais que aqueceram o cenário político nacional e começavam a transbordar os limites da ditadura, gays e lésbicas passaram a engrossar o caldo da luta por direitos, agrupando-se em coletivos como o Somos: Grupo de Afirmação Homossexual, e o Grupo de Ação Lésbica-Feminina (GALF].
Seu Waldir
Rubens

Mulheres
No Brasil, a luta das mulheres em torno de seus direitos é histórica; e no fim da década de 1970 voltou com força à pauta política do País. Surgiram nas principais cidades do país organizações de mulheres, jornais temáticos foram criados e congressos realizados. Logo, trabalhadoras formaram grupos de discussão e ação nos sindicatos. A maioria dessas iniciativas, além de somar forças à luta geral pela democracia, também se dedicava a combater as discriminações e elaborar pautas de reivindicações específicas. Uma canção em especial embalou essa luta. Em 1978, Milton gravou Maria, Maria no álbum Clube da Esquina 2. A composição celebra a determinação das mulheres: acostumadas a enfrentar todo tipo de preconceitos, elas terminam por extrair das adversidades a força para vencer desafios. Nos anos seguintes, a canção se converteria num hino dos movimentos de mulheres, que começaram a ganhar corpo em meio às outras reinvindicações sociais.
Maria, Maria

Negros
Faz parte de nossa tradição política a luta por direitos e atos políticos de afirmação identitária. Nessa vertente, o compositor brasileiro sempre inseriu tais questionamentos sociais em suas canções: desde Edu Lobo, que compôs a trilha do espetáculo Arena conta Zumbi (1964], onde a luta dos negros contra a escravidão seria uma inspiração na luta contra a ditadura militar; Simonal homenageou um dos maiores líderes da luta por igualdade racial em Tributo a Martin Luther (1966] – um dos poucos que o fizeram enquanto o pastor ainda estava vivo –; Jorge Ben reverenciou o boxeador negro Cassius Clay – que passou a se chamar Muhammad Ali ao se converter ao islamismo – em seu disco Negro é Lindo (1971]. O Black Power e outras ações afirmativas e de valorização da cultura negra energizaram a pauta por direitos democráticos no Brasil nos fins da década de 1970. Os blocos afro baianos Ilê Aiyê (1975] e Olodum (1979] destacaram-se como dos mais atuantes grupos de valorização das raízes africanas da cultura brasileira. Combatendo a discriminação racial, arrastaram multidões às ruas colocando em evidência denúncias e lutando contra o racismo arraigado na cultura brasileira.
Mandamentos black

Índios
Nos últimos anos da década de 1970, povos indígenas de diversas nações, muitas vezes lançando mão de mecanismos próprios da sociedade dos brancos, passaram a organizar associações para defender seus interesses e fundamentar e garantir seus direitos. Este novo índio que luta contra os abusos do Estado e resiste politicamente também figurou na nossa canção popular: Vevé Calasans homenageou Mário Juruna, primeiro índio eleito deputado federal (PDT-RJ] – e que sempre ostentanva seu cocar sobre seu traje protocolar de terno e gravata –, em Depuíndio; e enquanto Jorge Ben denunciava os atropelos do Governo contra os indígenas em Curumim chama cunhatã que eu vou contar, os paulistas do Língua de Trapo especulavam tragicamente sobre o efeito avassalador da invasão econômica e cultural branca, naquele momento, sobre os índios em Xingu Disco. As canções convergem para um mesmo fim: a exigência da demarcação de terras e políticas públicas de preservação das tradições indígenas.
Todo dia era dia de índio
Depuíndio
Xingu Disco

Meio Ambiente
Diante do projeto desenvolvimentista praticado pela ditadura militar, às custas de danos (muitas vezes irreversíveis] à natureza, uma reação política se fazia rapidamente necessária. Com o aprofundamento da luta pela democracia no país, a bandeira da defesa do nosso patrimônio ambiental foi levantada, entrando de vez na agenda política nacional. A necessidade de se preservar o meio-ambiente também figurou na canção brasileira. Em Saga da Amazônia, o violeiro faz um apelo emocionado e dramático: “a mais bonita floresta” estava gravemente ameaçada. O compositor não estava mentindo: além da extração predatória da madeira e recursos naturais da mata, a construção da Transamazônica fez um corte fundo na selva, deixando uma verdadeira cicatriz no coração da Amazônia.
Saga da Amazônia

Resistência cultural / Música Rock

Desde meados dos anos 1970, os roqueiros brasileiros desenvolveram um olhar crítico sobre a realidade vigente não se furtando a emitir sua opinião sobre os desmandos da ditadura. Rita Lee, Zé Rodrix e grupos como Ave Sangria utilizaram o som estridente das guitarras para colocar o dedo na ferida. Por volta de 1973 é a vez de Raul Seixas desafinar o discurso do “Brasil grande” promovido pelos governos militares por meio de canções que dissecavam o ufanismo vigente como “Ouro de tolo”, “Movido à álcool” e “Aluga-se”. Na década de 1980, o rock tornou-se a principal forma de linguagem da juventude para expressar suas expectativas, esperanças e angústias. O discurso simples e direto, a musicalidade crua criada com apenas três acordes foram as marcas de bandas punks como Restos de Nada. Já o Ultraje à Rigor e a Legião Urbana, por sua vez, chegaram ao todo das paradas de sucesso embalando opiniões, ideias, e concepções políticas que visaram desvendar a cara do Brasil em uma época de profundas mudanças como a campanha pelas Diretas Já que levaram o país ao restabelecimento da democracia após vinte anos de ditadura militar.

Aluga-se
Classe dominante
Que País é Esse?
Rock do Planalto
Vote em mim

Resistência cultural / Música Pessoal Do Ceará

Na virada da década de 1960 surgiu a maior expressão musical cearense de resistência à ditadura. O grupo conhecido como “Pessoal do Ceará” contava com nomes como Fagner, Ednardo e Belchior, e a partir dos anos 1970 tomaram conta do mapa brasileiro, fazendo enorme sucesso. Em Artigo 26 Ednardo volta ao ano de 1892, quando alguns jovens escritores, pintores e músicos cearenses fundaram a Padaria Espiritual, agremiação literária que se propunha a valorizar a cultura nacional, combatendo o francesismo dominante na época. Irreverentes, os “padeiros” criticavam sem piedade as elites e o clero – prática sugestiva aos tempos de ditadura, acrescentado os militares no conjunto apontado. Outra contravenção vinda dos cearenses foi cantada por Belchior, que botou a boca no trombone para denunciar a miséria no Nordeste e o desemprego no Brasil..

Artigo 26
Monólogo das Grandezas do Brasil

Resistência cultural / Música Canção Do Sul

No início da década de 1980 um sentimento se tornou latente na sociedade brasileira: esperança. Com a volta gradual dos exilados políticos, a revogação de Atos Institucionais e o retorno das manifestações públicas como forma de resistência aos militares, uma certeza começou a se solidificar na sociedade brasileira: a ditadura estava com seus dias contados. A dupla gaúcha Kleiton & Kledir exprimiu bem essa expectativa compartilhada em suas canções Viração e Semeadura – que expressavam confiança na retomada das lutas populares e a virada do jogo político. Outro gaúcho cantou esperanças, mas também lembranças e aflições de seu tempo de exílio. Pequeno exilado foi composta por Raul Ellwanger quando voltou para o Brasil depois de viver dez anos fora do país: “Sempre me comoveu muito a estória pessoal das crianças que tiveram sua infância armada em torno das vicissitudes políticas dos pais”, explicou. A canção inspirou-se em Bito, menino brasileiro que viveu a infância no exílio, primeiro no Chile de Salvador Allende, depois na França: “Menino crescido sem terra/ Teu único plano primeiro/ É ver terminar tanta espera/ É ser cidadão brasileiro.

Pequeno Exilado
Semeadura

Resistência cultural / Música Pau-de-arara

Em 1977, policiais militares invadiram a Universidade de Brasília a pedido do reitor José Carlos Azevedo, Capitão-de-mar-e-guerra. Os policiais cercaram o Instituto Central de Ciências, conhecido como Minhocão, para dar fim a uma greve de alunos e professores, iniciada após a suspensão de 16 alunos. Muitos foram presos. Reunidos, os estudantes recusaram-se a deixar o prédio e puseram-se a cantar: “só deixo o meu Cariri no último pau de arara.” O Último pau-de-arara foi gravada pela primeira vez em 1956. Nesse período, seus compositores Venâncio, Corumbá e José Guimarães faziam referência ao nome atribuído aos caminhões que transportavam moradores de diferentes regiões do nordeste para os principais centros urbanos do país – os paus de arara. Em 1972, a canção seria regravada novamente por Clara Nunes e Raimundo Fagner. Ao final da década de 1970, as denúncias de torturas contra presos políticos haviam difundido outro significado para o termo. Era o nome dado à peça de madeira, utilizada como instrumento de tortura, onde os presos eram pendurados pelos joelhos e cotovelos flexionados. Reunidos em frente à principal porta de acesso do Instituto, alunos de diferentes cursos, alunos de diferentes cursos da UnB transformaram os versos de Venâncio, Corumbá e José Guimarães num manifesto de resistência e denúncia de contra as violências praticadas ao longo dos governos militares.

Último Pau de Arara