Trabalhadores e pioneiros
Nordestinos e nortistas em sua maioria, vinham atraídos pela chance de um novo começo
Em 1957 chegaram ao local da futura capital os primeiros trabalhadores: uma massa humana de diferentes origens e características sociais que, mesmo sem garantia de conforto ou de bem-estar, dispunha-se a trabalhar para a Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap).
De acordo com o censo daquele ano, esses 256 primeiros migrantes procediam, na maioria, do Norte e do Nordeste do país. Eram os primeiros “candangos”, como ficaram conhecidos aqueles trabalhadores pioneiros, que vinham atraídos pela possibilidade de um novo começo e novas oportunidades. Saíam da terra natal com uma mala e pouquíssimo dinheiro — às vezes nem isso, só com a roupa do corpo — e lotavam a carroceria dos caminhões para viajar 45 dias em estradas precárias, de terra batida, até o local demarcado para a construção de Brasília, onde só havia mato e poeira.
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Ao chegar ao Planalto Central, o candango era encaminhado ao Instituto de Imigração e Colonização (Inic), órgão da Novacap responsável pela triagem dos operários. Lá, ele obtinha seu cartão de identificação (necessário para circular nos acampamentos) e era designado para trabalhar numa das construtoras ou na própria Novacap, onde sua carteira de trabalho era assinada — geralmente, pela primeira vez. Após o fichamento, o migrante era conduzido ao almoxarifado, onde recebia colchão, cobertor e travesseiro. Em seguida, podia fazer uma refeição na cantina do acampamento da construtora contratante ou num dos restaurantes administrados pela Nocavap.
Os serventes eram alojados em grandes galpões. Já os mestres de obra dormiam em pequenos quartos de madeira.
O cotidiano dos trabalhadores de Brasília era duro. Os operários trabalhavam das 6 horas da manhã até o meio-dia, faziam um intervalo de uma hora e depois encaravam novo turno até as 18 horas. Em alguns casos, trabalhavam 14, 15, 16 horas por dia. O salário era pago por horas trabalhadas, e, para aumentar seus rendimentos, muitos faziam serão. Como testemunhou um candango:
“Eu pegava empreitada de 200 horas e com dois dias eu dava ela pronta, dois dias e duas noites. Trabalhava dois dias e duas noites direto assim. Parava, só parava pra almoçar, e à meia-noite tomar o café, o lanche. Aí baixava eu, minha pá e minha picareta e não queria saber”.
Outro candango recorda:
“Nosso lazer era esse: contar história do passado, das pessoas que a gente tinha deixado na terra da gente. Cada um contava a sua história”. O lazer? Quase ninguém nessa época tinha lazer. Aqui não tinha lazer. Aqui tinha que ser igual porco: comer, trabalhar e dormir. […] o ânimo era o melhor possível, o pessoal animado, todo mundo atrás do seu eldorado, não é? Foi muito bom, foi uma época assim, que as amizades da época, era uma amizade, a gente via que tinha, mais sincera, não é?... Eu achei muito bom, isso de ter vindo para Brasília. Talvez se tivesse que começar tudo de novo eu repetiria isso. Mesmo já sabendo de todo o sofrimento que passei.”
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Os acidentes de trabalho ocorriam com frequência, e os operários eram atendidos no hospital geral, construído perto da Cidade Livre e chefiado pelo primeiro médico da cidade, Édson Porto, que viera de Goiânia. Mais tarde foi construído o Hospital Distrital, hoje HDB, e para lá iam os candangos acidentados. O serviço de ortopedia, chefiado pelo médico Campos da Paz, deu origem à futura Rede Sarah.
Muitos trabalhadores morreram, entre eles dois operários soterrados durante a construção da Universidade de Brasília. No local do acidente foi construído o auditório que hoje se chama “Dois Candangos”.
Histórias candangas
Origem do termo ‘candango’
Candango é um termo hoje utilizado para definir os pioneiros construtores de Brasília. Na origem, porém, o termo era pejorativo: servia para identificar os portugueses ou, ainda, pessoa de mau gosto. Com o passar do tempo, designou os senhores de engenho e, depois, os cafuzos (mestiços de índios e negros).
O escritor Euclides da Cunha, por sua vez, usava o termo “candango” para designar o sertanejo de aparência triste e cansada. A expressão desembarcou em Brasília para se referir aos milhares de nordestinos que lá chegavam tangidos pela seca e pela miséria.
A Festa do Trabalhador
No dia 1º de maio de 1958, Brasília teve sua primeira Festa do Trabalhador. Todas as construtoras e empreiteiras dispensaram seus funcionários e lhes deram roupa nova. Formou-se uma grande concentração no Eixo Monumental, com as máquinas e guindastes enfileirados, como num desfile de 7 de setembro, e o presidente Juscelino Kubitschek fez uma chegada espetacular de helicóptero. A partir de então tornou-se tradição na cidade comemorar o Dia do Trabalhador na Esplanada dos Ministérios.
Os guerreiros e os candangos
Foi instalada na praça dos Três Poderes a escultura “Os Guerreiros”, de Bruno Giorgi, logo apelidada de “Os Candangos”, pois era uma homenagem aos operários que construíram Brasília. O nome pegou. No dia em que foi inaugurada, a escultura atraiu milhares de operários que a admiravam e diziam: “Olha nosso monumento! Os candangos somos nós!”.
As casas que estalavam
Os candangos estranhavam os “estalos” das casas. O sol forte do Cerrado fazia a madeira se dilatar, enquanto o súbito esfriamento à noite a contraía, produzindo o barulho. Muita gente tinha medo, pensava que havia alguém estranho na casa, ou mesmo assombração.
Contra a farra, dor de barriga
No fim de semana, para segurar os operários no canteiro de obras do aeroporto comercial — hoje Aeroporto Juscelino Kubitschek — e impedir que saíssem para a farra nas cidades vizinhas — Luziânia, Anápolis ou Planaltina —, o engenheiro Schmitz, na sexta-feira, deixava de ferver os talheres usados no acampamento. Sem higiene, os restos de laticínios se convertiam — pela ação de uma bactéria — em ácido butanoico, que provoca dor de barriga. Com esse incômodo sintoma, muita gente pensava duas vezes antes de deixar o acampamento no fim de semana.
Faíscas de fogo no céu
Durante a construção dos prédios dos ministérios, o pôr do sol era um evento imperdível entre os candangos. O céu alaranjado do planalto ficava cheio de faíscas de fogo, provocadas pelas máquinas de solda na estrutura metálica dos prédios. Só de aço importado para a construção dos onze ministérios, do palácio do Planalto e do Congresso Nacional, foram 15 mil toneladas. A técnica da estrutura metálica era novidade no Brasil. Quem viu a chuva de faíscas no céu de Brasília não se esqueceu jamais.
A Kombi que era caixa de banco
A Caixa Econômica Federal dispunha de uma Kombi transformada em “caixa” de banco. No dia marcado, ela passava de obra em obra recolhendo dinheiro dos operários que desejavam depositá-lo ou remetê-lo para a família. Para muitos trabalhadores, o “caixa” era uma grande novidade, tanto que muitos deles entravam na fila duas vezes. Na primeira, para depositar; na segunda, para sacar o dinheiro e conferir se estava mesmo guardado ali.
Quanto ganhava um operário
Diante da concorrência, as construtoras chegaram a um acordo e criaram uma tabela de preços para cada tipo de serviço. O salário dos operários variava de 3.000 a 6.000 cruzeiros por mês, e geralmente o pagamento era feito em espécie, semanalmente.
O escrevinhador
Como a maioria dos operários não sabia ler nem escrever, todo sábado o jornalista Clemente Ribeiro da Luz e seus filhos punham mesas e cadeiras na porta de casa, cobravam uns trocados e escreviam cerca de 40 a 50 cartas, cada um, ditadas pelos operários para seus familiares — era o “Dia das Cartas”.
Candangos cantores
A Rádio Nacional de Brasília, criada em 1958, passou a apresentar um programa semanal de calouros, diretamente do auditório. Foi um sucesso. Os candangos se arriscavam no microfone, a maioria cantava os sucessos do momento, e os melhores saíam da rádio, cheios de orgulho, com um pequeno cachê no bolso.
Homem de um lado, mulher de outro e uma cerca no meio
Cada construtora fazia seus alojamentos com uma divisão separando os homens solteiros dos casais e famílias. A divisão era marcada por grandes cercas, e os solteiros eram proibidos de entrar nos alojamentos dos casais e famílias. Brasília tinha pouquíssimas mulheres, a vigilância nos alojamentos era pesada, e a cerca visava evitar conflitos entre os operários.
Carne no varal e olho vivo
A construtora Rabello, uma das maiores empresas que participaram da construção de Brasília, mantinha alojamento para homens solteiros com bom refeitório e comida farta. Mas a carne tinha de ser vigiada. Sem geladeira, ela era secada ao sol, estendida em varais. Dois vigias tomavam conta dos varais. Carne era artigo disputado, o maior motivo de briga nos alojamentos.
Quer comer bem? Vila Planalto
Na Vila Planalto, localizada entre os palácios da Alvorada e do Planalto, havia acampamentos de várias construtoras. Ali também moravam engenheiros e técnicos da Novacap. Niemeyer teve um escritório ali. Mas foi a construtora Planalto que batizou o lugar, por causa de seu refeitório bem montado, com boa comida. Virou programa de fim de semana: operários de outras construtoras combinavam almoçar ou jantar no refeitório da Planalto. O nome pegou, e até hoje a Vila Planalto é referência de restaurantes e diversão em Brasília.
Na falta de pinga, desdobro
A maioria das construtoras não permitia, em nenhuma hipótese, o consumo de álcool dentro dos canteiros de obras. Para driblar a proibição, os operários criaram uma mistura alcoólica fortíssima, com os ingredientes simples e fáceis de encontrar: álcool hidratado, água e açúcar. A mistura ficou conhecida como “desdobro”. Bastava um gole, e o sujeito emborcava — o tombo era inevitável.
As lavadeiras de Luziânia
No grande canteiro de obras, Brasília começava a tomar forma. Porém, sobre aquele mundo de andaimes, armações metálicas, estruturas de cimento e guindastes, pairava, soberana, a poeira da terra cortada nas recentes terraplanagens — vermelha, grudenta, fina. Engenheiros e peões ficavam todos iguais: vermelhos de poeira. E quando chovia era pior: a poeira virava barro, muito barro.
Ficaram famosas então as “lavadeiras de Luziânia”, requisitadíssimas pelas construtoras para dar conta das vestimentas do pessoal. E era tanta roupa, que frequentemente as peças acabavam trocadas. Era comum ver um engenheiro com meias de cores diferentes ou operários usando uma calça muito larga ou apertada demais.
Além do trabalho duro, essas moças, que vinham da vizinha cidade de Luziânia, ainda enfrentavam o perigo da violência sexual. Não foram poucas as lavadeiras estupradas quando entregavam a roupa lavada nos alojamentos.